Por
Michel Zaidan Filho, professor titular de História da UFPE.
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Representação pictórica dos sofistas |
A
ciência moderna da Retórica foi profundamente influenciada pela
suspeita metódica do filósofo Friedrich Nietzsche em relação ao
conhecimento humano. Num curto ensaio intitulado A verdade e a
mentira no sentido extramoral, Nietzsche lança as bases do
neonominalismo na ciência, na filosofia e na religião. Segundo ele,
o pensamento é uma patologia humana, uma espécie de racionalização
do complexo dos homens em relação às demais criaturas do
universo. Pensa-se para justificar a pobreza cósmica e filosófica
da humanidade. Sobretudo, a sua solidão metafísica. O pensamento
seria uma espécie de doença responsável pelo sentimento de
angústia e desamparo humanos diante da grandeza do mundo.
Neste
ponto, os conceitos, as ideias gerais, os princípios éticos e
gnosiológicos não passariam de meras “efígies” das coisas, sem
correspondência nenhuma com elas. Um tal pensamento levaria a um
relativismo ético desesperador, no sentido de que todas as
assertivas morais e deontológicas não passariam de uma
racionalização da vontade de poder, ou de potência – como dizem
os nietzschanos. Daí a moral do mais forte, do vencedor. E o cinismo
reinante quanto às razões dos vencidos, dos dominados.
Sob
a influência da chamada crise da razão ou do mal-estar na
modernidade, esse relativismo ético se tornaria mais robusto com a
pós-modernidade e os pensadores pós-modernos, muitos de inspiração
neonietzschiana (Foucault, Deleuze, Guattari, Lacan). E a principal
influência viria da chamada “virada linguística” patrocinada
por Ludwig Wittgenstein e, sobretudo, o segundo Wittgenstein, o da
crítica à representação e dos jogos de linguagem. Segundo nosso
filósofo da linguagem, o nosso pensamento não pode ser concebido de
uma perspectiva representacional, e a correspondência biunívoca
entre ser e linguagem seria apenas um dos jogos ou função da
linguagem.
Essa
crítica exerceu uma enorme influência sobre a ética, o direito e a
ciência, relativizando as pretensões de validade do discurso
científico, jurídico ou filosófico. O que levou à elaboração de
outras éticas (Apel, Habermas, Deleuze), éticas relacionais,
discursivas ou pragmáticas. No caso do Direito, houve um grande
avanço dos estudos retóricos, com sua repartição entre a retórica
material, a retórica pragmática e a retórica analítica, conjugada
à semiologia: o estudo do signo jurídico – na relação entre
sujeitos (agontica), entre sujeitos e coisas (ergontica) e a relação
entre o sujeito e os sinais (pitaneutica). O estudo da Filosofia do
Direito, a partir da retórica e da semiologia jurídica levou ao que
se pode chamar de uma “semiurgia”, de um mundo feito a partir da
linguagem, dos signos jurídicos. É quando o mundo das normas, dos
fatos e das vivências se esfuma e se torna mero discurso.
As
consequências dessa virada linguística, responsável pela
supervalorização da retórica na ciência do Direito teria
imediatas consequências políticas e éticas. Ao não reconhecer
mais as pretensões de validade normativa, estética ou gnosiológica
das assertivas filosóficas, o filósofo se torna, não um retórico
(no sentido aristotélico da palavra), mas um sofista, que aluga ou
vende o seu discurso ou seu saber filosófico a quem pode pagar por
ele. Daí que a justificação de golpes, estados de exceção e
doutrinas decisionistas ou autoritárias torna-se possível, em
função de uma razão retórica que, às vezes, resvala para o
cinismo ou o puro e simples casuísmo.
Essas
considerações talvez fossem ociosas e especulativas se essa
orientação não estivesse, hoje, nos cursos de pós-graduação em
Direito, nos cursos de bacharelado em Direito, nas estantes das
bibliotecas e livrarias de Direito e nas colunas de jornais e espaços
de debate, justificando a recente ruptura institucional que o país
sofreu, a serviço de interesses privados. Estaria aí, quem sabe, a
razão de uma distinção formulada, há pouco por um doutorando, em
tese sobre os cursos de Direito do estado de Pernambuco, entre
filósofos do Direito e sofistas, não retóricos. Os primeiros
pensam, refletem e criam; os segundos vendem seu cabedal filosófico
a quem pode pagar regiamente por ele.
Sei
que com essas palavras serei tratado como “tacanho”, “mesquinho”
e “ultrapassado”. Mas já está na hora de abrir o debate amplo e
desassombrado sobre a relação entre Filosofia do Direito, Retórica
e Sofística. E que cada um assuma as consequências de seus atos
retóricos.
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Uma justiça cega ou indiferente? |
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