Ensaio
7
de novembro de 2017
Por
Coletivo Transição, agrupamento de ativistas.
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Os
13 anos de lulopetismo, de mediação e conciliação pelo alto entre
grandes empreiteiros, latifundiários e toda uma camada de dirigentes
do mundo sindical, além das forças políticas fisiológicas e
coronéis da cidade e do campo, infelizmente desarmaram os movimentos
sociais e a organização popular autônoma. Com a ausência de
mobilização progressiva dos movimentos sociais populares, os grupos
de direita encontraram o caminho livre para avançar, muitas vezes de
modo violento. O lulopetismo tinha perdido sua base social histórica
de apoio. O golpe contra ele tornou-se então possível,
especial e principalmente com o esgotamento do ciclo
“neodesenvolvimentista” da década anterior.
Após
o golpe parlamentar, jurídico e midiático contra a presidente Dilma
Rousseff, a ofensiva ganhou força. Exibições artísticas
canceladas [1]. Critérios duvidosos para inclusões cinematográficas
de produções conservadoras em festivais de cinema [2].
Manifestações solicitando “intervenção militar constitucional”
[3]. Eventos e debates com intelectuais [4] ou sobre revoluções
sociais atacados nas redes sociais, invadidos e inviabilizados pela
gritaria e à força [5]. Teriam as esquerdas perdido a batalha
ideológica e cultural? Chegaram algum dia a tê-la vencido?
A
direita ideológica afirma que o Brasil está contaminado pela
“infecção do esquerdismo”, com artistas, intelectuais e
militantes universalmente espalhados por “aparelhos privados de
hegemonia” (escolas, universidades, museus, igrejas, institutos,
sindicatos, etc.). De acordo com tal visão, é necessária portanto
uma “guerra total” contra tal infecção, que é violenta e
intolerante, antes que “a civilização tal como a conhecemos”
(família, tradição, propriedade, valores morais, religião, etc.)
seja destruída. O mecanismo ideológico funciona mais ou menos
assim: cria-se um adversário imaginário com capacidades, forças e
características inexistentes – um espantalho – atacando-o
preventiva e persistentemente e vendo-o em cada manifestação
política e/ou cultural alternativa, ou sempre que o mínimo de
redistribuição estatal ou pública é proposta. Um dos aspectos
atuais da contrarrevolução preventiva de que nos falou Florestan
Fernandes.
Para
os neoconservadores, mesmo o PT é “comunista”. Da mesma forma
que nos EUA o Obamacare também o foi. Para eles, esquerda =
corrupção, assassinatos, arbítrio, intolerância, violência
institucionalizada, totalitarismo, barbárie. Marx, Engels, Bakunin,
Lenin, Trotski, Fidel, Che, Stalin, Mao, Marighella, Caio Prado
Junior, Florestan Fernandes, Lula, José Dirceu, etc. passam a ser
todos iguais. As divergências e incompatibilidades entre vários
deles é apagada. Os militantes e intelectuais de esquerda ou os
marxistas críticos do “socialismo realmente existente”, de ontem
e de hoje, muitos deles isolados, silenciados, exilados ou
assassinados na ex-URSS, China ou outros locais, não existiram nem
existem.
Como
um transtorno obsessivo-compulsivo, e que se alimenta da disseminação
do medo, a ameça “comunista”, “feminista”, “gayzista”,
“ateísta”, etc. passa a ser vista em todo lugar. O discurso é
em geral virulento, sem rigor teórico ou político minimamente
consistente. Gritos, ameaças, ataques e palavrões. Algumas
expressões são muito usadas: “covardes”, “canalhas”,
“pusilânimes”, “animais”, “desgraçados”, “idiotas”,
“bandidos”, “criminosos”, e por aí vai (para um exemplo, ver
vídeo da nota 8).
Atacando-se
um liberal moderado ou um social-democrata como se fosse de esquerda
ou comunista, fica vedada de partida qualquer alternativa à esquerda
do liberalismo ou da social-democracia. A própria possibilidade de
existência e adesão que uma tese como essa é capaz de gerar,
indica o período propício para o avanço das ideologias
intolerantes de direita que vivemos, e a necessidade de resistência
e unidade dos que desejam redistribuição profunda, reformas sociais
estruturais e a transformação substantiva da atual ordem social. O
contexto de crise social, econômica, política e cultural produz uma
combinação em que o ódio de classe se expressa em seu grau mais
violento: grande parte das classes médias tradicionais sentem-se
ameaçadas de perder posição social, tem seus espaços e fronteiras
de classe profanados por indivíduos de camadas mais baixas e veem-se
em dúvida e inseguros em relação ao futuro. Bolsonaro, Olavo de
Carvalho e consortes canalizam esse ódio e o transformam em
alternativa política autoritária contra os supostos responsáveis:
as esquerdas, as feministas, os sindicalistas, os ativistas de
movimentos sociais, as lésbicas, os gays, etc. Mas, aqui, o ataque
não é nem será apenas contra militantes, intelectuais e ativistas,
mas, sim, contra os direitos sociais, políticos e econômicos dos
trabalhadores e da maioria da população. A grande burguesia já
cogita apoiar Bolsonaro em um embate eleitoral contra um eventual
candidato menos submisso aos ditames completos do mercado. Dá-se,
então, o casamento entre as classes médias amedrontadas e raivosas
e os interesses do grande capital internacional e nacional. Sem um
bloco alternativo de classe dos trabalhadores, mulheres, negros,
LGBTT, camponeses, sem-teto,
sem-terra e demais despossuídos, o caminho da vitória da reação
ficará
pavimentado.
Até
onde pode ir a liberdade de expressão?
É
nesse contexto que acontece a exibição do
filme O jardim das aflições (Josias
Teófilo, 2017), sobre Olavo
de Carvalho, um dos gurus dos neoconservadores brasileiros, no
auditório do CFCH da UFPE no dia 27 de outubro de 2017. Não há
nada de problemático em si com isso. Conservadores, liberais,
social-democratas, socialistas, comunistas ou anarquistas tem o
direito de realizar suas atividades e debater suas ideias. Os
movimentos estudantis da UFPE como forma de concorrer com a exibição
da película do conservador, organizou no espaço externo do CFCH uma
atividade alternativa: poesias, discursos, exibições de vídeos
contra o fascismo, a intolerância e a ditadura militar. A exibição
do filme sobre Olavo de Carvalho foi bem divulgada e o auditório do
CFCH estava lotado. A mobilização reativa das esquerdas estudantis
ao filme ajudou a promovê-lo? É possível.
Por
que os movimentos estudantis organizaram uma atividade no mesmo dia e
hora e a 30 metros da atividade da direita? Não seria isso uma
atitude provocativa em si? Não, se o intitulado filósofo do filme
de Teófilo expressa opiniões e visões que são incapazes de tratar
com igualdade e legitimidade as pessoas que não compartilham de suas
posições. O problema reside quando determinadas ideias exigem a
destruição do outro ou servem para organizar a intolerância
violenta contra os diferentes, disseminam o preconceito e o ódio de
classe, raça e gênero. É mais ou menos isso o que ele faz. Vejamos
exemplos: (1) “Bons tempos aqueles em que os interessados davam o
cu sem fazer disso um movimento social. Pelo menos não gastavam
nisso verbas do Estado”; (2) “Cada milímetro que a direita cede
à esquerda corresponde a mais meio metro de pica que entra no seu
cu”; (3) “Depois de se foder muito, o sujeito empina o nariz e
diz que é orgulho gay”; (4) “Guerra contra a masculinidade. Está
acontecendo hoje, mas eu vi o começo da coisa muitas décadas atrás.
Aos onze anos, minha família estava numa pindaíba que fazia gosto,
e minha mãe me mandou passar uns tempos com umas parentes mais
abonadas que, como vim a descobrir, tinham profunda ojeriza a tudo o
que fosse viril, macho, forte e corajoso. Não aguentei muito tempo.
Horrorizado com o processo de boiolização forçada, fugi do
conforto para voltar a compartilhar a merda com a minha gentil
mãezinha. Meu estômago sofreu, mas minhas bolas salvaram-se” (Ver
nota 2). Pode-se ser tolerante com intolerantes? Deve-se buscar o
diálogo com aqueles que desejam destruir o outro?
A
entrada principal do CFCH e o “fazer-se” dos sujeitos coletivos
Nenhum
problema teria acontecido se cada um dos integrantes das atividades
ficasse concentrado nos seus respectivos espaços físicos. Acontece
que os Carecas do Brasil e bolsonaristas, ao invés de ficarem
no interior do auditório assistindo ao filme sobre o pseudofilósofo,
ou na frente da porta de entrada deste, decidiram se localizar ao
lado da atividade dos movimentos estudantis, no espaço externo do
CFCH. Nenhum militante de esquerda buscou acabar, provocar ou
inviabilizar a exibição do filme, ainda que alguns deles estivessem
dentro do recinto. Procuraram concorrer contra a exibição do filme
com uma atividade alternativa, pelos motivos colocados no tópico
anterior. Os recentes episódios de invasão e inviabilização de
debates e atividades públicas presenciais são orquestrados pelas
forças organizadas de direita. Depois da presença dos Carecas e
bolsonaristas no espaço físico da atividade das esquerdas, no lado
externo do CFCH, e de várias provocações, troca de xingamentos e
chutes em cadeiras plásticas, os estudantes e militantes de esquerda
entraram no prédio do CFCH e se aglomeraram exigindo que os Carecas
e bolsonaristas se afastassem e se dirigissem para a sua própria
atividade. A partir daí, a sequência das ações ocorreu assim: (a)
abertura de via alternativa de saída do prédio do CFCH pela direção
do Centro para os espectadores do filme sobre Olavo, para evitar o
contato físico entre participantes de ambas as atividades; (b)
permanência de grupos de bolsonaristas e Carecas do Brasil –
muitos que não são estudantes da UFPE – no interior do CFCH,
buscando sair pela entrada onde se encontravam os militantes
estudantis e os estudantes de esquerda; (c) tentativa de furar o
bloqueio das esquerdas à força por um dos integrantes do bloco dos
Carecas e bolsonaristas; (d) embate físico entre membros dos dois
agrupamentos.
A
disputa pela saída ou bloqueio da entrada principal do CFCH pode ser
vista como uma questão menor, mas diz respeito à produção de
autoconsciência dos coletivos em embate, ou a autoprodução dos
respectivos estudantes como sujeito coletivo, ou como categoria ou
movimento social, relacional e oposicionalmente aos Carecas e
bolsonaristas, e vice-versa: a disputa pela “conquista” da porta
principal do CFCH revela a disputa pela concepção de si mesmo como
força coletiva. Daí sua importância.
Antes
e mesmo durante o embate físico, vários celulares podiam ser vistos
filmando o episódio. Todos, ou quase todos os vídeos que foram
postados nas redes sociais, vieram do bloco da direita. Mais um
indício da maior organização dos ativistas conservadores. O enxame
de vídeos, postagens e notícias sobre o embate físico no CFCH
viralizou nas redes sociais. A direita está também mais organizada
na disputa pelas definições ou narrativas dos fatos. Uma hora
depois, o JC já havia publicado uma notícia em seu site [6]. Uma
matéria tendenciosa e que reproduzia a versão da direita: os
estudantes de esquerda da UFPE são intolerantes, violentos e não
permitem a própria existência de atividades conservadoras na
universidade. Uma descrição maniqueísta e primária, mas capaz de
manipular a opinião dos que não estiveram presentes. Depois do JC,
veio a reprodução quase que literal do conteúdo nos sites dos
grandes jornais do sudeste do país: Estadão [7] e Folha de São
Paulo. Num contexto de “pós-verdade”, a direita venceu no
terreno midiático e na produção de versões tidas como
verdadeiras. O vídeo postado mostra um dos estudantes do bloco da
esquerda empurrando outro do bloco da direita e iniciando o embate.
Fotos e montagens de cartazes com um careca sangrando e as legendas
ligadas à suposta intolerância das esquerdas são disseminados pelo
MBL. Nada sobre (a) a
tentativa, por um dos
integrantes do grupo de direita, de
atravessar à
força o corredor bloqueado pelos estudantes de esquerda objetivando
sair pela entrada onde estes se
aglomeravam; (b)
a presença ostensiva e provocativa dos
Carecas
e bolsonaristas (não estudantes que
vieram para a UFPE preparados para a briga e com armas brancas)
colados à atividade externa
das esquerdas; (c)
anulou-se
também o
contexto e a análise do discurso de disseminação
de ódio e
intolerância de Olavo de Carvalho nas
redes sociais, emulado
por um
professor de Filosofia do CFCH – responsável pela reserva do
Auditório para a exibição da película
–, que
ajuda a indicar os motivos da
existência de uma atividade dos
estudantes de esquerda simultânea e
alternativa ao
filme produzido sobre aquele.
E
agora?
O
mesmo professor de Filosofia da UFPE reservou o auditório do CFCH
para outro evento no dia 6 de novembro: a “descomemoração” da
revolução russa, que completa 100 anos em 2017. Tenta continuar
disseminando as ideologias de intolerância e do ódio contra as
esquerdas e o programa misógino, anti-povo e racista de Olavo de
Carvalho. Em suma, busca continuar organizando os neoconservadores,
com neofascistas incluídos.
A
direção do CFCH informou que a atividade não se realizaria por
questões de segurança. Acabou acontecendo sem problemas. O mesmo
professor, no dia da exibição de O jardim das aflições,
estava na linha de frente das provocações, em vez de trabalhar para
evitar os confrontos físicos. Para nós, este deveria ter ser o
motivo da proibição: além de disseminar abertamente o discurso de
ódio em redes sociais, e de não combater a presença de grupos
armados de direita no interior da universidade, o violento professor
utiliza-se do álibi do instituto da liberdade de expressão para
atacar, desmoralizar, deslegitimar, difamar tudo o que para ele é
assemelhado às esquerdas [8]. Acha feio tudo o que não é espelho.
É incapaz de debater livre e abertamente com grupos que possuem
visões opostas às suas.
Enfim,
não se combate a intolerância, o ódio de classe, a misoginia e o
racismo de direita com diálogo e argumentação. Até por que esta
direita não está disposta a debater ideias. Não está disposta a
mudar de opinião a partir da força dos argumentos. Contra a
violência da direita, a única alternativa é a organização
decidida e a força concentrada dos movimentos sociais e populares.
Sem isso, a intolerância e a violência de direita continuarão
crescendo. Os Carecas do Brasil vieram prontos para a
violência física. Organizam-se como uma “milícia urbana” com
armas brancas (pelo menos): soqueiras, tacos de beisebol, etc. Se os
movimentos sociais não se organizarem e se prepararem para eventuais
embates físicos, serão desmoralizados.
As
esquerdas devem fortalecer seus organismos unitários de ação, como
as frentes, promover a disputa pela hegemonia social e se preparar
para as batalhas físicas e das versões e narrativas que virão. Não
devem se concentrar em reagir simultaneamente aos eventos da direita,
mas em construir os seus próprios. Se não fizerem isso, serão
derrotadas física, social, cultural e discursivamente. Não se
é permitido ser tolerante com aqueles que se utilizam da liberdade
de expressão e de reunião como justificativa para organizar a
violência da reação e disseminar o ódio e a intolerância contra
o povo, as mulheres, os negros, as LGBTs, etc.
Notas
[1]
https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/museu-de-porto-alegre-encerra-exposicao-sobre-diversidade-apos-ataques-em-redes-socias.ghtml
[2]
https://www.cartacapital.com.br/cultura/por-que-nao-tirei-meu-filme-do-cine-pe-mas-apoio-quem-o-fez
[3]
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/11/1832671-manifestantes-a-favor-da-intervencao-militar-invadem-plenario-da-camara.shtml
[4]
https://revistacult.uol.com.br/home/sesc-pompeia-judith-butler/
[5]
https://extra.globo.com/noticias/educacao/professora-da-uerj-hostilizada-durante-evento-sobre-revolucao-russa-22003793.html
[6]
http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cidades/geral/noticia/2017/10/27/exibicao-de-filme-sobre-olavo-de-carvalho-termina-em-confusao-na-ufpe-313534.php
[7]
http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,exibicao-de-filme-sobre-olavo-de-carvalho-termina-em-pancadaria-na-ufpe,70002064071
[8]
https://www.youtube.com/watch?v=Rq3fstte6J4
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