Ensaio
Recebido
em 12 de setembro de 2017.
Por
Michel
Zaidan Filho,
professor titular de História da UFPE.
![]() |
Walter Benjamin, filósofo e crítico literário. |
2.
Estamos
falando sobre um projeto de ensino e estudo de História intitulado
“Mimese e História”, desenvolvidas no Departamento de História
(UFPE) que gerou vários produtos: livros, vídeos, grupo de teatro e
projetos de pesquisa. Foi também originalmente um das linhas de
pesquisa do atual programa de Pós-graduação em História, depois
extinta.
A
palavra “mimeses” é de origem grega e significa a representação
da realidade, ou ainda, imitação da natureza ou das ações
humanas. Neste sentido, toda a cultura humana – seja técnica,
científica ou artística – se baseia na capacidade mimética da
humanidade. A “mimese” pode assim se exprimir através do
trabalho, da linguagem ou da interação, para usar os termos da
filosofia de Jena do jovem Hegel. Foi o filósofo grego Aristóteles
o primeiro que tratou sistematicamente da “mimese” em sua obra A
poética,
considerada o primeiro tratado de estética que se tem notícia.
Nesta obra, o pensador grego distinguia dois tipos de representação:
uma variante imitativa, de natureza reflexa, descritiva, meramente
reprodutora do real, e outra de tipo alegórico, recreativa ou
transformadora da realidade. O primeiro tipo corresponderia à
narrativa histórica, por tratar do passado tal como ele foi. Já
o segundo corresponderia à literatura e as artes, por abordar o
mundo, não a partir de que ele seria ou teria sido, mas do que ela
poderia ter sido e não foi.
Essa
aproximação da História a um tipo de “mimese” reflexa ou
descritiva do passado foi, durante muito tempo, o modelo canônico da
narrativa histórica, até alcançar a sua plenitude na
historiografia do Renascimento e na apologia do chamado “método
crítico”, consagrado pelo humanista italiano Lorenzo Valla e o
monge francês Jean
Mabillon.
Contudo,
a nossa época foi muito crítica ao modelo aristotélico da
narrativa histórica, tachada por muitos de uma espécie de “realismo
ingênuo”. Com a crise do pensamento iluminista, abriu-se um sério
questionamento à suposta neutralidade da velha crônica histórica,
que passou a ser vista – graças à forte influência de Nietzsche
e seus discípulos – como uma espécie de mera racionalização da
vontade de poder ou um tipo de transformação da necessidade
histórica em virtude metodológica. A antiga narrativa aparecia
agora como uma modalidade de ditadura dos fatos, como uma pura e
simples justificativa do existente, expurgando assim da escritura
histórica outras dimensões essenciais como a dimensão
estético-expressiva e a dimensão normativa (Habermas). Como mera
descrição do que supostamente teria ocorrido no passado, a
narrativa histórica se limitava a ser uma simples apologia
disfarçada dos poderes e instituições dominantes, do tipo “foi
assim, porque tinha de ser assim, e não podia ser de outro jeito”.
Esses historiadores são o que Nietzsche chamou de adoradores do fato
consumado ou idólatras do factual.
Foi
preciso aguardar o advento de um novo “médium” do conhecimento –
a linguagem – para que a narrativa ganhasse o direito de ser uma
representação alegórica, intertextual, recreativa ou lúdica do
mundo histórico. Isso, sobretudo, com o aparecimento daquela obra
que seria tratada como “A poética
moderna”: A
origem do drama barroco alemão,
do filósofo Walter Benjamin. Nesta nova compreensão da escrita
histórica, o primeiro aspecto a ressaltar é o da plurivocidade da
linguagem humana, de toda linguagem, incluindo a linguagem da
História. A exuberância de sentidos em cada frase, cada palavra,
cada forma de expressão verbal. Segundo, tal característica estaria
intimamente associada ao inacabamento ou inconclusão essencial de
toda experiência humana. Terceiro, a necessidade inelutável da
interpretação, da exegese crítica do artefato literário, ou de
qualquer forma de expressão revestido de natureza sígnica.
Interpretação
que seria, invariavelmente, uma interferência, uma reescritura do
texto lido ou escrito. Nesta acepção, toda leitura é um ato de
interferência, um gesto de atribuição de sentidos, uma recriação
de novos sentidos por um leitor crítico (estamos aqui no domínio da
estética da
recepção, de Hans Robert Jauss). Releitura feita a partir de sua
experiência de vida, de seu saber prévio, de suas vivências e de
sua visão de mundo. Esta hermenêutica reconstrutiva se faz à luz
das imagens de desejo do leitor, seja de uma perspectiva micro ou
macro-histórica. Acrescentemos aqui algumas das características da
nova narrativa histórica: a polifonia dos atores, o dialogismo dos
personagens, o recurso ao flashback, o fluxo de consciência etc.
Digamos:
tais como os conceitos de longa duração e estrutura formaram o
vocabulário comum da História e as Ciências Sociais, há mais de
cinquenta
anos, hoje os conceitos de Hermenêutica e Utopia constituem a
linguagem comum da História e da Literatura, apontando para uma
História “ucrônica” (Braudel) – a História dos possíveis,
do que poderia ter sido e – ainda – não foi.
3.
O
primeiro passo para a criação de uma hermenêutica aplicada aos
estudos históricos e literários é, certamente, considerar o texto
histórico ou literário um texto aberto, polissêmico, passível de
múltiplas leituras e interpretações. Essa abertura de sentido do
texto não deve, contudo, ser considerada subjetiva, arbitrária da
parte do leitor em relação à obra. Mas deve residir na estrutura
mesma do documento histórico ou literário. Deve, portanto, ser
aceita como uma dimensão ontológica (essencial) da obra.
Tal
abertura nos revela que cada obra, cada texto, cada documento, é, na
verdade, constituído
de inúmeras camadas de sentido, que vão sendo sedimentadas pelo seu
processo de transmissão (a historiografia) ou pela tradição
cultural. O que torna possível distintas apropriações do mesmo
texto histórico ou literário por uma geração ou gerações
diferentes. Neste ponto, podemos aproximar o texto de uma obra
inacabada ou de uma escultura em estado de torso, onde cada leitor
faz/extraí a sua conclusão.
O
inacabamento essencial da obra histórica ou literária impõe
naturalmente um regime de leitura/interpretação da obra que faz jus
à multiplicidade de sentidos que ela possui. É aqui onde começa a
relação hermenêutica propriamente dita. Se o texto histórico ou
literário é um caleidoscópio de múltiplos sentidos, a leitura só
pode ser encarada como um infinito processo de significação, sob
pena de se fazer uma apologia ao sentido aposto pelo processo de
transmissão do relato histórico, que por melhor e mais verdadeiro
que seja, é apenas um dentre os vários outros sentidos possíveis.
Para
isto, a relação hermenêutica inicia o seu trabalho desconfiando do
sentido aparente (manifesto) do documento, buscando considerá-lo na
sua estranheza e irredutibilidade ao tempo presente do historiador,
procurando decompô-lo em seus elementos imediatos, situando-o em sua
historicidade específica. Este momento é o que chamamos de
“desconstrução simbólica” do texto. A ele corresponde ao que o
filósofo Walter Benjamin intitula como “o teor coisal” da obra.
Um
segundo momento da interpretação é o caminho de volta, ou seja, a
reconstrução do texto histórico. Revolvidas as camadas de sentido
subjacentes ao texto, separadas as camadas de sentido que se sobrepõe
no texto, ultrapassado o sentido aparente e imediato, lemos/relemos o
documento histórico ou literário, a partir das ruínas do texto, ou
dos índices de possibilidades históricas recuperadas pela primeira
fase da análise (a fase desconstrutiva).
A segunda fase deve liberar as significações escamoteadas ou
ignoradas pela historiografia ao longo do tempo. Essa releitura será
tanto mais rica em consequências
quanto for capaz de realçar a multiplicidade e a inesgotabilidade
das significações textuais. E, também, na medida em que reconheça
ser essa uma dimensão ontológica da obra. Esta etapa é denominada
por Benjamin como “a fase reconstrutiva” do texto.
A
relação hermenêutica não é uma simples releitura da obra/texto
histórico. Ler, reler à luz das significações liberadas (ruínas)
pelo processo de desconstrução/reconstrução do texto é
acrescentar, mudar, reescrever o texto. Reescritura tanto mais
importante quanto maior for o esforço de transgressão com a
tradição historiográfica ou literária estabelecida. A esta
reescritura, damos o nome de Interferência.
Assim como a abertura de sentido é uma dimensão consubstancial à
obra, a interferência é consubstancial à leitura da obra. Uma é a
complementação da outra.
Fim
da parte 2.
Bibliografia
Zaidan,
Michel. Leituras
em Walter Benjamin.
Recife, NEEPD, 2016.
Zaidan,
Michel. Ensaios
de Teoria.
Recife, NEEPD, 2014.
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Aristóteles, um dos gigantes da Filosofia. |
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