Ensaio
Recebido
em 15 de janeiro de 2016
Por
Coletivo
Transição,
agrupamento de ativistas.
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Atividade pública no CFCH ocupado (2016) |
Não
somos pacifistas, mas tampouco fazemos apologia da violência. Diante
do ocorrido no processo de desocupação negociada em dois
dos mais de dez
prédios da UFPE, uma reflexão e um balanço crítico é
extremamente necessário aos militantes, ativistas e todos os que se
opõem ao avanço da avalanche privatizadora e destruidora dos
direitos sociais e humanos no Brasil, intensificada a partir do golpe
parlamentar, jurídico, midiático e empresarial com a subida de
Michel Temer ao governo federal.
É
de conhecimento público, especialmente após o bombardeio da mídia
comercial, que as condições encontradas no CFCH e no CAC após a
desocupação foram extremamente adversas. Os prédios foram os
únicos a serem entregues em condições piores do que estavam no
momento da ocupação. Um fato “curioso”, caso observemos a
conjuntura das outras ocupações da universidade e até do restante
do país. Não cabe a nós aqui estabelecer uma lista inquisitória
sobre o ocorrido, mas buscar analisar o fato.
Não
há ganhos à militância e ao movimento estudantil com as
depredações (quebra de vidros, móveis e furtos de livros e
equipamentos) de salas de professores, coordenações, secretarias e
de grupos de estudos e pesquisas, ainda que precisemos perceber que
houve um certo direcionamento nelas, expressando uma orientação
para a revolta, já que não foram depredadas todas ou a maioria das
salas do CFCH (ou CAC). Os locais, a intensidade e a forma como que
cada depredação aconteceu em cada um dos diferentes locais
específicos deixa pistas de contra quem e contra o quê se estava
reagindo, ainda que de maneira ineficiente e problemática.
É
preciso compreender os motivos que levam estudantes em carências e
sofrimentos na universidade, diretos e difusos, a se comportar como o
fizeram. Especialmente quando vivenciam vários períodos em contato
com mentes e condutas violentas e assediadoras. As
“micro-hierarquias” das relações de poder cotidianas,
inextricavelmente ligadas às “macro-hierarquias” sociais, também
se expressam nas salas de aula, nas filas de um insuficiente
Restaurante Universitário, nos cortes de bolsas e da assistência
estudantil, nos processos administrativos e monitoramento dos
estudantes, nas reuniões colegiadas e nas demandas à reitoria. A
violência simbólica (associada a outras não tão simbólicas) é
tão mais eficiente quanto menos precisa recorrer direta e
explicitamente à violência física. É tão mais eficiente quanto
mais utiliza dessa mesma violência física seletiva e cirurgicamente
organizada, procurando chamar o mínimo de atenção, mas existindo
real e efetivamente contra os que excedem os limites do aceitável
para uma estrutura restritiva e privatizadora de direitos.
Todavia,
no contexto das ocupações, um movimento coletivo e de classe, o
tipo de reação com depredações como as que vimos só traz
prejuízos, de várias ordens. A ofensiva da mídia comercial e
institucional e das organizações de direita é imediata, e contra
elas não há chances de uma contraofensiva de mesma proporção que,
sem concordar em nada com as depredações, busque entender o
ocorrido e ao mesmo tempo não o universalize, nem reduza
unilateralmente o movimento global das ocupações a ele. Nossos
canais têm alcance ínfimo quando comparados à mídia corporativa.
A contraofensiva ainda fica mais prejudicada por não haver
justificativas plausíveis para o ocorrido. Não é uma ação tática
progressiva, não ajuda na mobilização das bases estudantis e não
ajuda no combate ideológico das ocupações como espaços legítimos
e avançados de luta. Ao contrário, só colabora em jogar gasolina
em corpos vulneráreis diante das ações da Polícia Federal. Como
convencer estudantes a se somar na nossa luta em 2017 se as
depredações e furtos aparecem para muitos (ou a maioria) como o
único “balanço das ocupações”? Um balanço geral das
ocupações, seus acertos e erros, suas conquistas, vitórias e seus
limites, contribuirá para essa tarefa. É urgente e necessário que
este documento seja elaborado pelo Ocupa UFPE.
Reprovamos
tais danos e furtos do patrimônio público por percebermos que eles
acarretam prejuízos graves à comunidade universitária –
patrimônio popular em última instância, ainda que muitas vezes
privatizado por alguns – e trazem apenas benefício individual para
algumas pessoas. Ou seja, os depredadores, entendendo reagir a uma
violência real e na maioria das vezes difusa e institucional,
acabaram reproduzindo o que criticam. Ironia das ironias: de
um suposto coletivismo a um individualismo dito autonomista (mas
afetivamente ligado ao liberal).
Tais
atos não ajudam – na verdade, prejudicam – a construção de uma
militância efetiva, radical, independente e de base. O dinheiro
público que tanto pressionamos, durante as reuniões com a direção
e a reitoria, para que fosse utilizado na melhoria da infraestrutura
dos Centros mais desfavorecidos, agora deverá ser utilizado para
tapar os buracos deixados.
Ainda
haveria mais a analisar: as mensagens e justificativas para as
depredações, que ficaram gravadas nas paredes, ou na pele do CFCH:
“Por aqui passou a revolta popular!”, “Stalin matou pouco!”,
e por aí vai. As orientações ideológicas extremamente
heterogêneas dos estudantes, suas diferentes experiências sociais,
suas vinculações políticas diversas etc., podem nos ajudar em algo
aqui, aliado a certo “espírito do tempo”. As derrotas sociais
multidimensionais efetivas e em progressão do trabalho contra o
capital, a vitória do cinismo sobre a transparência (ou o casamento
inseparável entre segredo e democracia liberal), a descrença
generalizada na política institucional, o oportunismo eleitoral do
espetáculo que tem como contra-face e complemento um sectarismo
auto-proclamatório estéril, alimentam um individualismo niilista
existencial evidente e parecem ser aspectos desse “espírito do
tempo”. Com o declínio das “grandes utopias”, e o esgotamento
dos “reformismos sem reformas” e da política das conciliações
manipulatórias, que tem no Brasil o PT como grande representante
(ainda que não o único), para muitos restam as mudanças
moleculares cotidianas muitas vezes alçadas a redenções políticas
espetaculares com um viés “artístico” ou “estético”, mas
fugazes. Como se as ocupações fossem o momento decisivo e final da
vitória definitiva da liberdade plena. Além de várias outras
vertentes políticas, subsistem e convivem, não sem problemas e com
um impacto não completamente desprezível, espécies de um
autonomismo individualista e dogmático e um neo-stalinismo
retrógrado e violento, parecendo indicar que nossa luta
emancipatória ainda está mesmo em estágios fundamentalmente
incipientes. Uma síntese política entre autodiscipina militante e
democracia ativa parece difícil de conquistar e é um dos desafios
estratégicos de nossa época.
Mas
há também uma riqueza real e potencial em muitas das experiências
esboçadas nas ocupações: rigor no combate às pequenas relações
de desigualdade de gênero, raça, classe e sexo; autogestão dos
espaços; liberação sexual e dos corpos; mensagens e expressões
artísticas e políticas, como muitas das pichações no térreo do
prédio do CFCH; deliberações coletivas e busca de uma divisão de
trabalho não hierárquica, etc. Apenas as avaliações superficiais
podem condenar e reduzir
os estudantes a vândalos e criminosos ou celebrar as depredações
mencionadas
como
manifestações progressivas.
Ainda,
gostaríamos de ressaltar que as ocupações trouxeram ganhos reais
ao movimento estudantil e à comunidade universitária, como a
criação de grupos de trabalho paritários (com igual participação
de professores, estudantes e técnicos) sobre orçamento, novo
estatuto universitário, assistência estudantil e transparências
nas contas da UFPE. As práticas supracitadas de depredações não se coadunam com a práxis de quem luta pelo fortalecimento de uma
universidade pública, gratuita, de qualidade e, sobretudo, popular.
2017
se apresenta como um ano que nos cobrará ainda mais, e teremos que
responder à altura aos ataques neoliberais do Estado. Entretanto,
teremos que saber como responder. Avante na luta contra a retirada de
direitos, pela unidade das esquerdas socialistas e combativas e pela
democratização das universidades públicas.
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