Resenha*
Recebida em 01 de julho de 2016
Por Mauricio Gonçalves, que fez graduação e pós-graduação em Sociologia e Ciências Sociais.
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O jovem Lev Davidovitch Bronstein |
Trótski: exílio e assassinato de um revolucionário
Bertrand
M. Patenaude
Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2014, 403p.
I
O
filme The assassination of Trotsky (1972), de Joseph Losey,
com Richard Burton e Alain Delon, mostra os últimos dias do
revolucionário russo em Coyoacán (México). Com um roteiro que
privilegia a sequência cronológica dos eventos, a película busca
aproximar-se da personalidade e das ideias de Trotski a partir de sua
rotina na prisão domiciliar da Avenida Viena, ao mesmo tempo em que
tenta retratar a tensão psicológica de Ramón Mercader até o
desfecho de seu crime em 20 de agosto de 1940. Há alguns anos o
autor cubano Leonardo Padura com o seu O homem que amava os
cachorros (2009) intentou algo parecido, mas acrescentou um
elemento que enriqueceu e deu à obra “meio ficcional” uma
repercussão mais geral e duradoura: as viagens de ida e volta entre
as histórias pessoais dos protagonistas (Trotski, Mercader e Ivan)
relacionam-se aos dilemas da época e nos levam a uma reflexão
profunda sobre os caminhos e descaminhos da luta pela “égaliberté”
[2] e pelo socialismo, e consequentemente sobre o próprio século 20
de conjunto.
Notas
Bertrand
M. Patenaude, professor na Universidade de Stanford (EUA), revisita
ainda uma vez mais com o seu Trótski: exílio e assassinato de um
revolucionário (2009) os últimos anos de vida de Lev Bronstein,
mas o faz com uma estrutura narrativa que poderia posicioná-lo entre
o filme de Losey e o livro de Padura. Aproxima-se do filme de Losey
ao centrar-se nos últimos anos de Trotski no México – a película
trabalha os últimos meses. E do livro de Padura pelo fato de
realizar tanto as remissões históricas a partir dessa primeira
camada quanto de assemelhar-se a um gênero que poderíamos chamar de
“thriller policial” ou “romance de suspense”. Trata-se
de uma biografia dos derradeiros anos de exílio de Trotski no
país de Emiliano Zapata – de sua chegada ao porto mexicano de
Tampico a bordo do petroleiro norueguês Ruth ao seu último
dia: entre 9 de janeiro de 1937 e 21 de agosto de 1940.
II
A
biografia de Patenaude inscreve-se em uma sequência relativamente
extensa de obras do gênero sobre Trotski: de sua autobiografia,
Minha vida (1930), passando pela trilogia de Isaac Deutscher –
O profeta armado, O profeta desarmado e O profeta
banido (1954, 1959, 1963); Victor Serge – Trotsky: vida e
morte (1951); Paulo Leminski – Trótski, a paixão segundo a
revolução (1986); Pierre Broué – Trotsky (1988);
Dmitri Volkogonov – Trotski: o eterno revolucionário
(1996); Jean-Jacques Marie – Trotsky (1998) e Trotsky:
revolucionário sem fronteiras (2006); entre várias outras. Em
suma, da década de 1940 aos dias de hoje parece haver um
ininterrupto interesse pela “tragédia de Trotski”. Em algumas
vezes tal interesse tem o objetivo de esconjurar um fantasma que
teima em permanecer por perto, à espreita e pronto para entrar em
ação. É o que acontece com a biografia em tela. O autor é atraído
pelo drama histórico do fundador do Exército Vermelho. Atração
que pode ser entendida a partir do “problema Trotski”,
adequadamente resumido por Mendonça:
“Como
líder político, Trotsky entraria para a história,
fundamentalmente, como o grande opositor do stalinismo; no entanto,
tal oposição a Stalin, em vez de traduzir-se numa rejeição do
bolchevismo e na elaboração de uma interpretação mais ou menos
alternativa do marxismo, fez-se, pelo contrário, em nome de uma
reabilitação do bolchevismo e do leninismo. Diferentemente
do “marxismo ocidental” da Escola de Frankfurt, Karl Korsch e
Gramsci, que, ao elaborarem suas interpretações alternativas de
Marx, o faziam de forma a rejeitar em alguma medida o valor histórico
da Revolução Russa, em Trotsky, tudo gira em torno da defesa
do valor universal da experiência russa de 1917.
Mas,
diferentemente também de outros marxistas ocidentais, como Lukács e
Althusser, para os quais a defesa do leninismo estava associada à
defesa do regime soviético efetivamente existente como portador, em
alguma medida, da tradição revolucionária de Outubro, para
Trotsky, a defesa da Revolução de Outubro exigia a rejeição
completa e total do stalinismo. O resultado é a posição sui
generis da obra trotskista: contra o stalinismo – mas
herdeira do marxismo “oriental”; pelo bolchevismo – e também
contra o regime soviético efetivamente existente. O resultado seria
que Trotsky seria rejeitado por ambas as tradições marxistas – a
“ocidental” assim como a “oriental” [3].
Patenaude
vai então tentar responder a esses incômodos vinculando a
trajetória de Trotski aos seus ataques ao “boneco de palha”
(“espantalho”) marxiano/marxista: a teoria social de Marx (e dos
marxistas) é um determinismo econômico (p.246), sua concepção de
história é teleológica, progressista, otimista e fechada (p.65) e
sua doutrina política é incompatível com os valores democráticos
– a revolução de Outubro foi um “golpe de Estado” (p.33,
p.90, p.243, p.316), e sua filosofia pretensamente materialista é de
fato mobilizada por valores absolutos e idealistas (p.65 e p.343).
Ou
seja, ainda que Trotski seja para o autor uma figura interessante e
enigmática – uma vez que nele convivem vários: o intransigente
opositor político de Stalin; o autor de livros marxistas “não
ortodoxos” como Literatura e revolução e História da
revolução russa; o líder e organizador de um exército e
defensor do “Terror Vermelho” durante a guerra civil; o
intelectual orgânico que defende um “militantismo cultural” que
tenha o cotidiano popular (família, religião, entretenimento,
trabalho, etc.) como objeto de conhecimento e transformação
consciente, indicador efetivo da construção de uma nova cultura e
sociabilidade (Questões do modo de vida); etc. –, apesar da
complexidade da personalidade do biografado, e mesmo admirando alguns
de seus traços, o retrato que nos aparece ao fim da tela pintada por
Patenaude é o de um revolucionário (certamente um dos mais
exemplares) que como tantos outros do século 20 acreditaram, lutaram
e morreram por uma miragem: Trotski foi uma daquelas criaturas com
grande capacidade para sacrifícios, mas que desprezava as conquistas
civilizatório-democráticas do Ocidente e que se aferrou a verdades
(e a uma fé) transcendentais, ilusórias e utópicas
(irrealizáveis). As últimas páginas do livro são dedicadas à
exposição de depoimentos de ex-militantes trotskistas que
abandonaram suas crenças políticas anteriores, e que são tomados
como representativos do esclarecimento político adquirido pelo
“realismo pragmático” do presente, uma vez que perceberam
(finalmente!) de que maneira as ações de Trotski “(...) como
líder bolchevique o transformaram num prisioneiro do mito de Outubro
como uma revolução dos trabalhadores e de que maneira em seu último
exílio ele transformara seus seguidores em prisioneiros desse mito
também. (...) Otimismo era a única coisa que ele tinha de verdade”
(p.343).
A
temporalidade com que Patenaude trabalha é portanto retrospectiva e
“acabada”. A morte de Trotski em 1940 e o sentido de sua vida
nada têm a nos dizer sobre o presente, sendo seus descaminhos objeto
de mera curiosidade histórica.
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Breton, Rivera, Trotski e Jacqueline (1938) |
III
Talvez
os aspectos mais válidos do livro, e onde ele mais foi beneficiado
pelas novas fontes historiográficas e bibliográficas disponíveis a
partir da década de 1990, sejam as descrições e os detalhes que
apresenta sobre o plano orquestrado pelo serviço secreto staliniano,
com a participação direta do “guia genial dos povos” (sic!),
para assassinar Trotski: a Operação Utka (Pato). Neste
ponto, Patenaude se valeu principalmente de materiais russos e
estadunidenses, muitos deles relacionados a pesquisas e depoimentos
de e sobre espiões e ex-funcionários da polícia política
soviética (KGB e depois NKVD): Kolpadiki e Prokhorov [4], Andrew e
Mitrokhin [5], Nikandrov [6], Kern [7], Sudoplatov [8], entre outros.
É
aqui que podemos perceber como a vida e o destino de Trotski superam
a ficção: as personagens envolvidas e mobilizadas para eliminar “o
Pato” fazem parte de uma intrincada e complexa rede internacional,
uma guerra de um Estado-nação contra um homem e seu pequeno núcleo
de ativistas, que partia do próprio Josef Stalin,
seguia com o chefe do NKVD Lavrenti Beria, continuava com
Pavel Sudoplatov, designado o chefe da missão para eliminar
Trotski, passava ainda por Iosif Grigulevitch e Leonid
Eitingon em solo mexicano e finalmente findava com Caridad
e Ramón Mercader, por um lado (ramificação da Operação
Pato conhecida como “A mãe”), e David Alfaro Siqueiros,
por outro (a outra ramificação, denominada “Cavalo”). Havia
ainda bases europeias e estadunidenses que conseguiram infiltrar
agentes – Mark Zborowski, conhecido como “Étienne”
ou “Tulip” e Robert Sheldon Harte, ambos tidos como
militantes trotskistas – nos círculos pessoais de convivência e
militância respectivamente de Leon Sedov na Europa (o filho de
Trotski que cuidava das tarefas organizativas da IV Internacional por
lá) e do “Velho” em Coyoacán.
Além
deles, informações, provas materiais e memórias de oficiais
desertores do NKVD também servem de base para a produção do livro,
como as de Walter Krivitski e Alexander Orlov, por
exemplo.
IV
Esses
elementos, indispensáveis para um bom “thriller policial”,
todavia, não são acompanhados de uma satisfatória análise
histórica e social. A inteligibilidade da práxis e da vida de
Trotski é mais ou menos deduzida do “tipo psicológico” que é
produzido pela ligação incondicional e dogmática às
características teóricas e filosóficas atribuídas ao marxismo –
descritas mais acima. Aqui ele não poderia estar mais distante da
biografia exemplar de Deutscher, ou de O homem que amava os
cachorros, de Padura.
A
camada literária policial mais superficial que cobre toda a trama
não é internamente nucleada por interações sociais que a ponham
em perspectiva adequada e não se apoia numa interpretação
histórica, sociológica ou política mais ou menos sólida. Além
disso, o método pelo qual ele apresenta a trajetória de Trotski é
deficiente: são os seus traços de personalidade – o mesmo
acontecendo com Stalin, fundamental ou redutoramente mobilizado por
“inveja, ódio e vingança” (p.199) em seu intento de assassinar
seu mais intransigente opositor – que dão forma até para
explicações de ordem mais abrangente. Uma espécie de prioridade
explicativa para as dimensões individuais sobre a história e a
política em transformação.
Assim,
qual a contribuição da obra para as ciências sociais e/ou humanas?
Trótski: exílio e assassinato de um revolucionário tem
pouco a oferecer: privilegiando os aspectos subjetivo-individuais do
autor de A revolução desfigurada, é incapaz de proporcionar
uma narrativa que atribua sentido global à sua tragédia. O livro de
Patenaude pode ter algum apelo como um gênero de suspense, centrado
nos últimos anos e na operação para assassinar Trotski, e mesmo
como mais uma peça no mercado editorial, mas não consegue produzir
uma explicação que realize uma interação dialética entre o
destino pessoal de Trotski e os destinos mais amplos da luta pelo
socialismo. Ou seja, não conseguimos perceber como o individual
se articula com o social em uma inteligibilidade para a
totalidade da narrativa. A Operação Pato não é
relacionada, ou o é de maneira bastante deficiente, com o seu
contexto histórico de fundo, que é o que finalmente a determina.
Diferentemente, este fazer teórico dialético é perceptível em
Deutscher, por exemplo, exatamente quando mostra que
“Deve
mais uma vez ser enfatizado, que até o final, tanto a fraqueza como
a força de Trotski estavam enraizadas no marxismo clássico. Suas
derrotas sintetizaram o predicamento básico pelo qual o marxismo
clássico foi atacado como doutrina e movimento: a discrepância e o
divórcio entre a visão marxista do desenvolvimento revolucionário
e o curso real da luta de classes e da revolução” [9].
Slavoj
Zizek escreveu sobre a necessidade de repetir Lenin em Às portas
da revolução (2002) [10]. Repetir não é exatamente mimetizar
mecanicamente o que foi historicamente feito. Repetir um autor ou
acontecimento é captar o seu “núcleo racional” e atualizá-lo
para os dias de hoje como alternativa à barbárie do capital em
crescimento, como tarefas que foram iniciadas, mas que não puderam
ser “completadas” ou desenvolvidas positivamente (e que continuam
“pendentes” no presente). Há algo de historicamente
representativo na trajetória e morte de Lev Davidovitch Bronstein
que se vincula aos dilemas da construção socialista e humanista na
“Era dos extremos”. Patenaude parece ter escrito sua biografia
com o objetivo implícito de acreditar (e nos fazer acreditar) que a
vida e o sentido da luta de Trotski, por mais interessante e trágico
que tenha sido, permaneceram irrevogavelmente no passado e que ele
não deve, mas mais importante, não pode “ser repetido”.
Se
o século 20 deu início a questionamentos estruturais e práticos ao
domínio do capital, e se Trotski os percebeu e os materializou em
sua práxis revolucionária tanto antes – Balanço e
perspectivas – quanto durante a Revolução Russa – A
revolução permanente e O que é e para onde vai a URSS
–, interpretando e desvelando em presença a realidade histórica
cambiante, ele se configura como um clássico do marxismo no
século 20. Por isso, o legado que deixou contém um elemento de
“vitória na derrota” (Deutscher).
Certamente
não é possível criar soluções para os difíceis e quase
impeditivos problemas derivados da entrada na época de crise
estrutural do capital (Mészáros) apenas com Trotski. Mas já
que esta crise abre um período histórico de transição onde “(...)
não há mais lugar para reformas sociais sistemáticas nem para a
elevação do nível de vida das massas; quando cada reivindicação
séria do proletariado, e mesmo cada reivindicação progressiva da
pequena burguesia, conduzem invariavelmente para além dos limites da
propriedade capitalista e do Estado burguês (...)” [11],
desenvolve-se a tendência de superação do divórcio entre
uma revolução em sentido totalizante – civilizatória, mundial e
superadora da pré-história da humanidade (Marx) – e toda uma
época. Então, “repeti-lo” se converterá numa operação
provavelmente inescapável, pois ao expor as principais linhas de
força do desenvolvimento do capitalismo no século 20 – através
de uma abordagem dialética original (internacionalismo analítico,
desenvolvimento desigual e combinado, revolução permanente, etc.) e
de uma metodologia política inovadora (mediações de um programa
político transitório) –, ele se mostrou em seu tempo como um
teórico da transição por excelência. São razões como essas que
nos ajudam a entender que Bertrand M. Patenaude não poderia ter
feito uma análise mais equivocada – e mesmo bastante superficial –
acerca do “problema Trotski”.
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Trotski tira foto entre admiradores estadunidenses |
Notas
*
Publicada pela primeira vez na Revista História & Luta de
Classes, ano 11, n.21,
março/2016. Na web, inicialmente apareceu em
https://lavrapalavra.com/
[2]
Neologismo ou junção das palavras francesas égalite e
liberté, respectivamente igualdade e liberdade.
[3]
Mendonça, Carlos Eduardo Rebello de. Trotsky e a revolução
permanente. Rio de Janeiro: Garamond, 2014, p.17-8.
[4]
Kolpadiki, Aleksandr e Prokhorov, Dmitri. KGB: Spetsoperatsii
soveskoi razvedki. Moscou: Olimp-Astrel, 2000.
[5]
Andrew, Christopher e Mitrokhin, Vasili. The
sword and the shield: the Mitrokhin archive and the secret history of
the KGB. Nova York: Basic Books, 2001.
[6]
Nikandrov, Nil. Grilevitch:
Razvedchik,
“kotoromu vezlo”.
Moscou: Molodaya Gvardia, 2005.
[7]
Kern, Gary. A death
in Washington: Walter G. Krivitsky and the Stalin terror.
Nova York: Enigma Books, 2003.
[8]
Sudoplatov, Pavel e Sudoplatov, Anatoli. Special
tasks: the memoires of an unwanted witness – a soviet spymaster.
Nova York: Little, Brown and Company, 1994.
[9]
Deutscher, Isaac.
Trotski – O profeta banido
(1929-1940). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1984, p.527.
[10]
Zizek, Slavoj. Às portas da revolução. Boitempo: São
Paulo, 2005.
[11]
Trotsky, Leon. O programa de transição para a revolução
socialista. São Paulo: Sundermann, 2008, p.16-18.
Trotski é um problema! Ainda hoje continua um problema! Então, "naturalmente", um problema há de ser resolvido (se houver solução). Mas, e se o problema já estivesse sido resolvido? Exemplo: A tese principal de Trotski: A REVOLUÇÃO PERMANENTE. Pelo que me concerne: Os oprimidos, os novos e velhos burgueses, os camponeses, os aristocratas, os operários, os poetas e artistas, entre vindas e voltas, estão em permanente luta até que o "sonho" da Revolução Humanista, sem dúvida de VIDA, "verifique" (material-virtual, trabalhando estranho espiritual), nossa pobre insistência existencialista...
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