Ensaio
Recebido
em 28 de junho de 2016
Por
Alberto Luis, mestrando em Sociologia pelo IESP/UERJ.
![]() |
Messi se infiltrando na muralha chilena |
Dentre
os muitos mistérios que cercam o homem, avesso às explicações
racionais, aos golpes de força da dialética e aos métodos
quantitativos, está a empatia e o seu inverso, a antipatia. Ouvi
tempos atrás de uma pessoa uma confissão sincera: antipatizara
outrem porque este amava futebol enquanto ela tinha aversão à
prática e aos fervores de tal paixão vulgar. Imediatamente, sem que
sequer pudesse ativar o filtro da cordialidade, ericei-me dos pés à
cabeça e entre nós instaurou-se antagonismo que síntese nenhuma
poderá suprassumir. Será necessária toda uma ciência para
explicar a potência misantropa que o futebol pode desencadear. Certa
feita, na circunstância de uma vizinhança toda rubro-negra, cortei
relações com a rua. É que também tenho, caro leitor, os meus
surtos de passionalidade. Se pudesse reescrever os dez mandamentos,
não titubearia, e converteria em pecado número um, crime hediondo
contra a divindade de deus, o perjúrio ante a pelota.
É nesse diapasão que só consigo
ver diferenças cosméticas entre uma boa partida de futebol e uma
epopéia. Sou daqueles que, como Nelson Rodrigues, acha que só a
grandiloquência típica dos memoráveis aedos consegue dar conta,
captar a essência mesma do futebol e fazer justiça a ele. Por isso,
não há partida marcante que não me traga à memória os feitos de
Aquiles, Ulisses ou similar. O
drama burguês é insosso demais para
dar conta do que acontece ali, entre as quatro linhas, bem
como nos arredores e bastidores.
O problema é que, venhamos e
convenhamos amigos a amigas,
a coisa está pra lá de nefasta
na resenha esportiva nacional. É
muito curió cantando alpiste na mesma estação. Comentarista,
resenhista, etc., virou marqueteiro, criou novilíngua e, no caldo da
crise da cultura nacional, só
é capaz de contar passes errados e decorar valor de transferência
de jogador brasileiro em transição
de temporada. De
tal modo que se alguém não o fez antes, faço-o
agora: declaro aqui a quase-morte
da crítica futebolística no Brasil! Tá
na UTI, só não morreu ainda
por graça de
blog ou outro. O
leitor pode até achar canalhice
patriótica, coisa de quem quer puxar
a sardinha pro próprio anzol, mas
a verdade é que quem lê
crônica esportiva de qualidade hoje tem que recorrer ao Blog
Síntese.
Não
quero com isso dizer que somos isso e aquilo, que nos alçamos ao
padrão Nelson Rodrigues de qualidade. Não, de forma alguma. Mas
vocês hão de julgar por si mesmos: sapere aude! Façam
uma breve busca nesse humilde blog e verão o quão estou certo. Vão
constatar que o quadro é
magrinho, que a frequência é irregular e que
até então
estávamos
jogando com um homem só – Renato “Ribalta” Kleibson, peralta
das várzeas recifenses, e que sozinho já faz um estrago danado.
Eis que depois de muito
revoltar-me com esse estado de coisas, resolvi botar meu pé na
estrada e entrar também nessa jogada. E
pra completar o trio de
ataque, quero aqui publicamente convocar também
o amigo Rosano Freire, craque
de bola, narrador de pelada e
hábil comentador esportivo
de Facebook.
Vamo ver
agora quem é que vai guentar.
Como isso aqui não é redação da
Folha nem linha de produção da Volks, nos damos ao direito e ao
desfrute das ruminações sem fim. E ao comentário do oportuno, que
na minha concepção pode ser desde o instante kairótico do drible
entorta-coluna, passando pelos arrabaldes do gramado até o tempo
estendido dos 90 e poucos minutos. Um desses momentos dignos de nota
foi a noite do último domingo. Ca-ma-ra-das, a-mi-gos… que
es-pe-tá-cu-lo estava o Estádio Metlife! Quando vejo um jogo entre
seleções da latino-américa sempre tenho a reconfortante sensação
de que o futebol voltou pra casa. Como um ateniense que porventura
visse os jogos olímpicos retornarem à Hélade depois de temporada
fora. Boa parte das pessoas acham que a pátria-mãe do futebol é a
Inglaterra, mas esse é um grande mito. Mito, não, conversa fiada
mesmo. Os ingleses, com seus pés chatos e suas tripas longas,
desenvolveram o soccer, que para eles consistia numa disputa entre
dois grupos por encaçapar um objeto redondo numa meta. Eles
reinventaram, sim, a monarquia como adorno, figuração, além da
empáfia característica, claro. O futebol quem inventou fomos nós,
os latinos. Conta-se que o periférico, esfomeado, maltrapilho e
sobretudo privado da letra, da comunicação escrita, impedido de
fazer poesia com papel e caneta, primeiro cantou depois fez elipse
poética com a cornuda, sob o olhar inicialmente cético, depois
revoltado do europeu que achou que fosse trapassa lançar a bola pôr
sobre o adversário. E o juiz apitou falta, que eles cobraram,
desajeitados, de bico e pra fora...
Mas, voltando ao assunto: e a final
da Copa América? Que jogo, que beleza de partida. Hoje, dizem
alguns, o futebol se homogeneizou a tal ponto que não se sabe mais
quem é quem dentro de campo se trocarmos as camisas dos times, e
tecem considerações lamuriosas sobre um passado idílico do futebol
nacional. “E mais”, protestam os exaltados críticos informados
por toda a tradição filosófica do materialismo histérico e
diabólico pronunciada em bom marxês, “o futebol acabou, o capital
consumiu até a última gota do futebol-arte”, e continuam, “quero
ver Messi e Neymar jogarem na Penha, etc., etc., etc.”. Qual que
nada! Conversa de palhoça! Aos sapateiro, os sapatos! À Messi, o
que é de Messi. O jogo de domingo foi um autêntico tête-à-tête
latino; o Chile com uma evolução tática de dar nos olhos;
jogadores como Vargas, com uma elasticidade, uma rapidez... intrépido
o garoto; e a mesma marra, catimba tão nossa. É que o sangue é
quente! Mas, pra mim, meus caros, mais uma vez, em campo ninguém foi
capaz de ofuscar Lionel. E dizendo isso, bato de frente com a
torrente de manchetes de jornal que hoje como amanhã, destacaram,
destacarão, a sua suposta maldição com a camisa argentina. É que
no fim, quando Ele está em campo, pouco importa o resultado da
partida.
Quem vê Messi jogar, vê um desfile
de gerações. É toda a Argentina de todos os tempos, é toda
memória no bico fino das chuteiras imortais, presa aos pequenos pés
e às pernas curtas e firmes que cortam a diagonal do campo como um
tiro: é quase Borges que se lê naqueles lances pra lá de
fantásticos em que tantas vezes o vimos contrariar todos os
prognósticos, dos mais otimistas, e desabar como uma flecha de Apolo
sobre toda a muralha adversária, fazendo-a ruir como naquela já
antológica quartas de final contra os italianos na Champions League.
Ah, e que tiro! Ele escorrega, desliza, e em golpes de inteligência
e destreza abre clareiras na defesa adversária; expande o espaço e
contrai o tempo. Sem dúvida, o jogo de Messi é mais objetivo e
menos festivo do que foi o de Garrincha, Ronaldinho Gaúcho ou
Neymar. Mas quem há de reclamar a ausência do poético na prosa de
Graciliano? Ou nos haikus certeiros de Matsuo Bashô? É que o
poético não tem morada na forma, e é ele quem informa Messi.
Ontem ele desabou depois do jogo; as
câmeras o pegaram em um momento de fragilidade extrema. Só os
heróis tombam; os deuses são imortais e os meramente humanos já
caem pra morte. Aquiles chorou as infâmias de Agamenon, mas pela sua
desonra toda a Hélade pagou. Seu retorno foi triunfal. As quedas de
Lionel as pagaremos nós, que amamos o futebol sem um “por que”,
já que, como dizia o velho Leminski sobre a poesia, os inutensílios
justificam a si mesmos. Talvez Lionel seja uma daquelas bençãos que
os deuses patronos oferecem a seu povo num ato de bondade e
restituição ante o sofrimento e a dor. Aquiles agora é autista,
sem soberba, vaidade, arrogância. E quem disse que a humanidade não
anda pra frente? Espero com fé, agarrado a Logun Edé dum lado e
Nossa Senhora do outro, que Lionel se reerga do abatimento. Vai
Messi, abre a cortina da tua imensa oficina e tira o extraordinário
de lá!
![]() |
Messi: capitão da Argentina |
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Adicione seu comentário.