Ensaio
Recebido
em 10 de abril de 2016
Por
Flávio Brayner, professor do Centro de Educação da UFPE.
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Grafite no Centro de Educação/UFPE |
Os
recentes eventos ocorridos no hall no Centro de Educação –
pichações, grafitagem, inscrição de dizeres e frases –
exprimindo um conteúdo de certa forma inesperado (aliás, inesperado
sobretudo no gesto) teve o efeito de desencadear reações igualmente
inesperadas, algumas exaltadas, outras mais serenas e reflexivas, mas
que tiveram um efeito visível: estimularam um caloroso debate
(aberto ou velado) sobre a legitimidade (e até a legalidade) do ato
e sobre o uso do chamado “espaço público”.
Não
me reportarei aqui às circunstâncias que provocaram os eventos (uma
oficina de grafitagem orientada por professores deste CE), e
começarei tentando refletir sobre o uso, agora já um pouco abusivo,
de um conceito que me parece valioso e decisivo para a sensibilidade
que chamamos de republicana: o “espaço público”. Percebi – e
aceito o fato de poder estar, eventualmente, ajuizando de forma
equivocada – que se estabeleceu, não apenas um uso repetitivo do
termo – como assinalei – mas, sobretudo, uma operação
linguística que facilmente reconheci ao lembrar de velhos estudos
que realizei, em outra época, sobre o tema batido e rebatido da
“ideologia”. Um daqueles autores afirmava algo como “(...) A
ideologia também opera discursivamente, torcendo e retorcendo os
conceitos e as palavras até que delas não sobre mais nenhuma
substância semântica original, ali onde ela – a palavra – bebia
sua força de significação original”. Explico porque inicio
com essa reflexão.
Os
gregos da época de Péricles faziam uma interessante distinção
entre a Ágora (a praça pública onde os demos se reuniam
para deliberar sobre os destinos da cidade) e a Pólis (uma
determinada disposição interior para regular os conflitos
entre os homens através da palavra argumentada, através do
convencimento e do diálogo). Era a Pólis que representava o “espaço
público” e não a Ágora, que era apenas um lugar situado na
geografia urbana (como a Asty e a Acrópole). Quando nós confundimos
uma coisa com a outra, somos levados a admitir, por exemplo, que,
como existia a Praça Vermelha (um lugar público) na Moscou
stalinista, logo também existia “espaço público” no regime
soviético; que como existia a Alexanderplatz (uma praça pública)
na Berlim nazista, também existia “espaço público” sobre o
hitlerismo! O que não é de forma alguma verdade. Como também não
é verdade que, o fato de existirem prédios públicos, financiados
com dinheiro público e destinados a servir a um “público” eles
estariam abertos a qualquer um: organismos ligados à inteligência e
segurança nacionais não são abertos, não são “democráticos”
(e, sim, hierarquizados e com forte noção de mando e obediência)
e, mesmo públicos e funcionando no interior de Estados de direito,
não são nem transparentes em suas ações e estruturas e nem
abertos ao olho republicano. O que complica ainda mais o conceito!
Mas mostra que “espaço público” apesar do conceito indicar uma
geografia, um topos, ele significa uma outra coisa, só
possível ali onde os homens decidiram resolver suas dissensões
através da palavra. O espaço público
é isto: uma decisão de colocar “um mundo entre os homens”
(inter homines esse) e, através da pluralidade de
opiniões e pontos de vista decidir sobre destinos comuns. Não se
trata, inicialmente, nem de se obter hegemonias, consensos, harmonias
sociais, resultados ou contratos sociais (...), mas de assegurar que
essa pluralidade possa se exercer em qualquer espaço onde homens se
encontram para exprimir pontos de vista diferentes e plurais sobre o
mundo e suas experiências possíveis. Um espaço público pode ser
eliminado (totalitarismo) ou consolidado (democracias), mas não
pode, a rigor, ser “pichado” (o que se picham são paredes de
prédios públicos ou privados).
Se
aceitarmos esta proposição conceitual (e acho que ela é aceitável,
ou cairíamos numa confusão cujo resultado só interessaria àqueles
que desejariam reduzir o espaço da pluralidade de opiniões. Aliás,
uma posição que ganha cada vez mais, desculpem o trocadilho,
espaço!) talvez tenhamos uma outra perspectiva sobre os eventos
recentes do CE.
Não
gostaria de discutir a “legalidade” do ato, com sua eventual
criminalização, seus “vândalos”, seu aspecto “anti-higiênico”,
sua “formação de quadrilha” (...) (um vocabulário muito mais
adequado às ideologias iliberais, higienistas, haussemanianas
e racialistas do que a intelectuais que fizeram da “formação
humana” sua profissão e seu compromisso), teses com as quais eu
não concordo, mesmo porque tive uma formação nas ciências sociais
e humanas que, de alguma maneira, me ofereceu filtros para que eu não
enxergasse nos eventos de natureza social, nas explosões de
expressão subalternas, nas formas desviantes de organização de
demandas (...), simples atos de bárbaros em vias de destruir a
grandeza perene do Império: não concordo, pois, com tais teses,
assim como receio que discutir sua “legalidade” é criar
deliberadamente uma cortina de fumaça sobre aquilo que se
esconde abaixo da linha d'água dessas discussões.
Acendeu-me,
no entanto, a luz amarela do alerta ideológico quando ouvi frases de
meus colegas professores, publicamente proferidas e, algumas delas,
sem nenhum pejo de disfarçar a inspiração zdhanovista de
seus propósitos, frases que aqui reproduzo com a mesma marca de
deselegância e grosseria com a qual foram proferidas: “Que vão
à merda todos aqueles que defendem a liberdade de expressão
artística!”; ou ainda, “Se dermos o direito de voto
universal aos estudantes, este Centro vai se transformar num Templo
Evangélico!”. Ouvi, ainda, no debate que se instalou no
hall do CE, joias de confusão antirrepublicanas tais como: “Na
minha casa eu não deixo meus filhos riscarem as paredes!”. Não
há, aqui nesta frase, propriamente falando, uma “confusão”
entre espaço público e espaço privado, mas um prolongamento de um
no outro, como se o espaço público fosse uma extensão do privado:
eis aqui a base onde se assenta o patrimonialismo ou o
cartorialismo tão comuns em nossas relações com a coisa
pública, como se educação doméstica fosse a mesma coisa que
“virtude republicana”. Ainda pior é supor que o “Não
deixo” da autoridade parental (privada) possa se alongar no
espaço público!
Preocupantes
frases porque, mais do que manifestações de descontrole verbal, de
um passageiro surto antirrepublicano, de ironia descabida ou de
confusão semântica, nelas já se pode antever um futuro debate que
seus autores apenas anteciparam: a futura relação entre sociedade e
universidade (que o novo Estatuto tratará de dar substância) e as
formas de exercício da democracia entre nós. Eis o que se esconde
sob a linha d'água.
Foi
ainda interessante, no aludido debate, que, mais do que se procurar
refletir sobre o ocorrido, o que ele revelava ou escondia, de que
“Outras pedagogias” se estava falando (e por que as atuais
não “servem” mais); o que queria dizer o enigmático “Mais
Mel!”? (mais doçura em nossas relações?); e “Mais
Everson Melquíades”? (professor negro, de origem pobre,
homossexual, gordo (...), quer dizer, alguém que mesmo tendo os
atributos dos excluídos, aparece como um símbolo das dores
expressas nas paredes do CE?); por que o CAC também fora atingido?;
mais do que refletir, repito, procurou-se “soluções”: punição
para os diretores por sua suposta cumplicidade, falta de autoridade e
de zelo com o patrimônio público (a política do “Não
deixo!” à qual me referi acima), pintar as paredes
de branco (como se pudéssemos apagar os fatos, escondendo-os sob uma
camada de tinta, a política da “pá-de-cal”),
ou, finalmente, criminalizando os atos e convidando uma advogada
psicóloga para iniciar sua intervenção lembrando os artigos do
Código Penal nos quesitos sobre depredação do patrimônio público
(a política dos bárbaros contra o Império)!
Mas
o que não se pode negar é que foram exatamente os fatos ocorridos
que provocaram a emergência de um espaço público entre nós: um
debate acalorado e com tinturas de exaltação irracional, mas um
debate. Eis aqui um fato interessante e não abordado na discussão:
o estético (falo também do mural externo, igualmente objeto
de viva polêmica) foi capaz de produzir um espaço público!
Não cabe aqui a máxima latina “Gosto não se discute”
(ou estaríamos impedidos de falar de “bom” ou de “mau”
gosto). Cabe –isto sim – a ideia kantiana de que toda vez que
dizemos para alguém algo como “Veja que linda paisagem!”
estamos procurando o acordo tácito de nosso interlocutor (e há até
um certo constrangimento quando há discordância), um acordo que não
está orientado por nenhum princípio apodítico ou demonstrativo,
como uma asserção científica ou uma proposição lógica sobre a
qual não teríamos outra saída, senão concordar. Aqui, neste
espaço público gerado pelo estético, estamos em plena
possibilidade de exercer nossa capacidade de julgar os objetos que
despontam no horizonte social – alguns até incômodos! –, de
nos colocarmos no lugar do outro e de estabelecer, com toda
propriedade, o espaço público da opinião argumentada
(embora nem todos os argumentos tenham igual valor diagnóstico,
descritivo ou judicativo). Bastaria lembrar, em apoio ao meu
argumento, do efeito cultural, social, político e institucional que
os grafites tiveram nos eventos de Maio de 1968 em Paris,
eventos que, depois deles, nunca mais seríamos os mesmos, sobretudo
em nossas relações com a autoridade.
Penso
que foi isso que aconteceu no CE. Mas, acho também que tais eventos
só provocaram a onda de protestos, de indignação, de
incompreensões mútuas, de frases desastrosas, porque já se percebe
na atmosfera dominante, que um modelo de universidade está chegando
ao fim, que estamos do limiar de um outro arranjo institucional, com
novas configurações de poder e mando; há o temor de que, o que
aconteceu no CE, se espalhe pelo campus, que os estudantes – nossa
razão de estar lá e nosso temor cotidiano, inclusive político –
apareçam na cena institucional armados de novas exigências, novos
conceitos, constituindo uma outra subjetividade coletiva, organizando
novas demandas, para as quais não estamos preparados (inclusive
demandas pedagógicas), exprimindo inusitadas indignações que nos
farão sempre muito medo. De que forma eu vislumbro o que está por
vir?
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Grafites nos viadutos em frente à reitoria da UFPE |
Belo texto.
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