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Angelus Novus, de Paul Klee (1920) |
Ensaio
Por
Michel Zaidan Filho, filósofo, historiador, cientista político, professor da UFPE e coordenador do NEEPD/UFPE – Núcleo de Estudos Eleitorais, Partidários e da Democracia.
"O
esquecimento é uma forma de reificação. A memória, de libertação"
Jorge
Semprún
O
tema da memória e da rememoração [anamnese] passou a ter
importância, no mundo moderno, a partir da perda da dimensão social
e coletiva da memória. Da divisão social do trabalho e o
aparecimento de um tipo de sociabilidade anômala, egoísta e
desenraizada socialmente. É a temática da alienação e reificação
típicas do capitalismo tardio ou administrado, onde os indivíduos
não se reconhecem na organização social e nem mantém entre si
qualquer laço ou relação humana. Essa questão ganhou força com o
conceito de “memória coletiva”, do suíço Maurice Halbwachs,
e de “memória involuntária”, de Walter Benjamin, a partir da
influência da crítica de Marx ao capitalismo, da psicanálise de
Freud e da mística judaica.
Segundo Benjamin, a memória
coletiva está associada à vida comunitária da época do
artesanato, onde ainda não havia a divisão técnica do trabalho –
no interior da fábrica –, e a divisão social do trabalho. Mestres
e artesãos conviviam fraternalmente, sem distinção de classe,
estamento ou casta. Essa vida comunitária conduzia a um
compartilhamento de situações, lembranças, emoções, ajudando a
forjar uma memória coletiva – um depósito de lembranças comuns –
responsável pela produção de identidade social. Vem daí o
conceito de “experiência” [erfahrung]
como o sustentáculo de uma memória social, responsável pelo
sentimento de pertencimento de cada um a uma mesma cultura ou
coletividade.
Com o advento da modernidade
urbano-industrial, e a rígida e impessoal divisão social do
trabalho, rompem-se aqueles laços, a vida comunitária e o processo
de individualização das pessoas. Produz-se uma fragmentação da
vida social e um impacto na formação da memória coletiva, que é
substituída por uma memória individual, sem conteúdo de uma vida
compartilhada (valores, normas, símbolos, crenças, etc.), balizada
por sentimentos de solidão e individualismo. O pertencimento social
das pessoas agora é caracterizado pelo lugar que elas ocupam na
estrutura de classes e na estratificação social, determinada pelas
relações econômicas. O dinheiro e o valor de troca são a mediação
universal entre os indivíduos, não mais a memória coletiva e a
experiência. Temos agora a vivência
[erlebnis],
que é um fragmento desconectado do todo da existência
social.
A problemática da perda da memória,
substituída pela consciência (para-choque que amortece o efeito
traumático dos choques na vida cotidiana), transforma os indivíduos
em átomos que giram sem comunicação uns com outros. São autômatos
ou androides desmemoriados.
A solução (terapêutica)
benjaminiana seria o resgate ou a recuperação dessa memória
coletiva (onde estão depositados os indícios de outra vida, de uma
outra sociabilidade, de lembranças fundamentais), libertando as
pessoas da alienação, do esquecimento e da dominação social. A
proposta é tanto de ordem micro como macrossocial. A libertação
microssocial se dá através da anamnese e da cura, pela lembrança e
a fala. A libertação macrossocial é da ordem da ideologia e da
política, e se confunde com a revolução.
Salvar o passado é resgatá-lo do
esquecimento e reatualizá-lo através das lutas sociais. É
transtemporalizá-lo, realizando hoje as utopias e projetos das
gerações passadas, para que o seu sacrifício não fique impune, ou
seja, em vão. Aplicar essa Filosofia da História ao resgate da
memória dos oprimidos, em nossa sociedade, nos obriga a compreender
que “nem os mortos estão seguros, se os vencedores de ontem
continuarem a vencer, pelo silêncio e a impotência” a que foram
destinados os vencidos. Por isso, a (re)instauração dessa memória
tem de ser a partir de uma ordem de luta, não de festa ou
confraternização. Relembrar é salvar do esquecimento e do olvido
as lutas antigas, os ideais e sonhos dos antepassados. E essa tarefa
é do presente, dos indivíduos presentes, da vida presente.
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