Ensaio
Recebido
em 28 de janeiro de 2016
Por
Renato
Correia,
estudante de Direito e ativista social.
O
transporte público pode ser classificado, principalmente, quanto à
sua essencialidade à vida social. Nesse ponto, está diretamente
ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, conceito que
norteia as normas jurídicas do Estado liberal moderno. Atualmente,
tal temática tem assumido uma relevância especial, e isso
provavelmente pode ser atribuído a dois motivos interligados: o
primeiro tem a ver com o caos no trânsito
das grandes cidades, que frente a falência do transporte público
tem levado as pessoas a alternativas individuais, limitadas e
ineficazes. O segundo seria o fato de que os que mais
dependem do transporte público são os setores sociais mais
agredidos, quais sejam: trabalhadores, estudantes e desempregados. Em
face a essa problemática, passo à análise.
O transporte e a dignidade das pessoas
Por dignidade da pessoa humana temos o atributo intrínseco de cada ser humano, independente de qualquer condição. Anota-se que apenas o fato de existir enquanto ser humano já o torna merecedor de respeito e consideração por parte do Estado, implicando, nesse sentido, em um complexo de direitos e deveres fundamentais contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano. Assim, o que o Direito ou o Estado pode fazer é reconhecer, respeitar e defender a dignidade humana.
O transporte e a dignidade das pessoas
Por dignidade da pessoa humana temos o atributo intrínseco de cada ser humano, independente de qualquer condição. Anota-se que apenas o fato de existir enquanto ser humano já o torna merecedor de respeito e consideração por parte do Estado, implicando, nesse sentido, em um complexo de direitos e deveres fundamentais contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano. Assim, o que o Direito ou o Estado pode fazer é reconhecer, respeitar e defender a dignidade humana.
Não
obstante, no que tange aos transportes públicos, é
patente a violação desse princípio. Diariamente as
pessoas enfrentam paradas lotadas; ônibus que
atrasam; insegurança nos transportes; ônibus lotados e viagens
longas. No caso de Recife, temos ainda terminais integrados
constantemente lotados, além de apresentarem problemas em
relação à acessibilidade, desrespeito aos idosos e gestantes.
Nessa
linha de visualização, é facilmente verificável que o transporte
público está longe de ser um serviço prestado de forma adequada,
de modo que esse quadro caótico intensifica a supressão da
dignidade humana.
É
importante
registrar que os transportes públicos estão inseridos na
Constituição Federal de 1988; no
rol
de direitos sociais,
que
são aqueles direitos
que
têm por objetivo garantir aos indivíduos condições para o pleno
gozo de outros direitos frente as desigualdades.
A
inclusão do transporte público no rol de direitos
sociais, através da Emenda Constitucional (EC) nº
90/2015, ao lado de educação, saúde, alimentação, trabalho,
moradia e etc. é resultado das manifestações de junho
de 2013 e é uma grande vitória, pois o Estado passa a reconhecer o
transporte público como um segmento que merece atenção.
Desse
modo, a alocação do transporte público como direito social
apresenta-se como uma prestação positiva a ser implementada pelo
Estado e tende a concretizar a perspectiva de uma isonomia
substancial e social na busca de melhores e adequadas condições de
vida. Nesse contexto, o transporte público agora consagrado como um
direito social, ao lado dos direitos fundamentais, passa a formar o
núcleo substancial do regime democrático [burguês], do Estado
brasileiro, ou seja, o Estado precisa criar condições para sua
concretização e sua operacionalidade
deve estar harmonizada com o princípio da dignidade da pessoa.
Em
total acordo com os princípios constitucionais, a Lei nº 12.587, de
03 de janeiro de 2012, estabelece diretrizes para uma política
nacional de mobilidade urbana como instrumento para o desenvolvimento
urbano fundado
em princípios como:
"I
- acessibilidade universal; II - desenvolvimento sustentável das
cidades, nas dimensões socioeconômicas e ambientais; III - equidade
no acesso dos cidadãos ao transporte público coletivo; IV -
eficiência, eficácia e efetividade na prestação dos serviços de
transporte urbano; V - gestão democrática e controle social do
planejamento e avaliação da Política Nacional de Mobilidade
Urbana; VI - segurança nos deslocamentos das pessoas (...)".
Estando
o transporte público consagrado no texto constitucional como um
direito social, bem como ratificado em lei federal como estratégico
para o desenvolvimento urbano, por que não funciona como deveria?
Qual
a lógica dos transportes públicos e por que a lei não funciona?
O
ponto crucial para reconhecer as limitações, em maior ou menor grau
do transporte público como ferramenta acessória à emancipação no
espaço urbano é entender duas questões: por
que a lei não funciona? Por
que o transporte público não cumpre sua função social?
Inicialmente, o primeiro ponto a ser observado no que tange à
ineficiência da lei é que não dá para concebê-la de forma
abstrata e dissociada da materialidade dos fatos. As normas jurídicas
são um conjunto de leis
determinadas
pelas relações e interesses econômicos, de tal sorte que as formas
jurídicas se relacionam intimamente com a forma socioeconômica
predominante.
Por
mais progressivas que sejam as leis (e algumas são progressivas)
o Estado burguês apresenta limites para obter o bem comum da
sociedade e proteger os interesses universais. Isso ocorre porque as
leis e o próprio Estado atendem aos interesses da
classe social que está no poder. O que nesse caso não são os
setores excluídos e explorados da sociedade.
Em
recente decisão (28/01/2016) do Desembargador Presidente do Tribunal
de Justiça de Pernambuco (TJ-PE), Frederico Ricardo Almeida Neves,
referente ao pedido de suspensão do reajuste das tarifas em Recife,
Processo nº 0000974-33.2016.8.17.0000 (0422911-9), o TJ-PE acatou
o pedido do Governo do Estado de Pernambuco
e derrubou a suspensão do ajuste nas tarifas de ônibus em
Recife/PE. Essa
decisão externaliza o quanto os interesses econômicos influenciam
a relação jurídica.
A
decisão nº 0000974-33.2016.8.17.0000 (0422911-9) do TJ-PE não pode
se encerrar num debate meramente jurídico, abstrato e isolado dos
fatos sociais. A decisão do TJ-PE é, na verdade, expressão dos
interesses dos empresários de ônibus [envolvidos] nas decisões
jurídicas: “É
a relação social específica
que se exprime na forma jurídica”
(NAVES, 2000) [2].
No
que tange o modelo de transporte público, a regra que predomina é a
lógica dos empresários, de modo que o preço das tarifas, por
exemplo, variam de acordo com os interesses das empresas,
que por sua vez buscam a maximização de seus lucros. Desse
modo, os empresários convertem um serviço essencial à
efetivação de outros direitos em mera mercadoria. O
próprio Estado também beneficia os empresários a manter os lucros
em níveis satisfatórios através de concessões, incentivos e
créditos. Em âmbito local, o
governo do Estado de Pernambuco concede aos empresários do
Sistema de transporte público da Região Metropolitana do Recife
(RMR),
R$ 149,7 milhões de subsídios, uma espécie de cota do governo. E
ainda assim os transportes são precários.
Tratando-se
de benefício aos empresários, as empresas de
transporte
público de passageiros na RMR, gozam
ainda da redução
da
alíquota
do ICMS relativa a óleo diesel, consoante
Lei
nº 15.599 de 30 de setembro de 2015 e Portaria nº 020 de 29 de
janeiro de 2015, da Secretaria da Fazenda. O total de descontos
concedidos pelo Estado para estas empresas que operam na RMR chega ao
montante de 7.315.000 litros de óleo diesel. Além disso, existem
isenções para combustíveis, pneus e outros artigos.
É
possível notar através da análise das normas que tratam sobre a
temática, que os empresários não cumprem o que a lei determina, ou
seja, os empresários não agem em coerência com os princípios
constitucionais mais elementares. Vê-se,
portanto, que a lei no direito burguês não é a mesma quando se
trata de irregularidades cometidas pelos empresários. Apesar das
limitações e contradições do Estado burguês, é imperativo
pautar a luta pelos transportes a partir do que já existe, exigindo
o cumprimento do que a lei já positivou e continuar lutando para
além do que já existe, inclusive para além da concepção
normativa.
Conclusão
Constata-se
que o transporte público é um direito em que o Estado precisa criar
condições para sua concretização, e que sua [operacionalidade]
deve estar harmonizada com o princípio da dignidade da pessoa.
Todavia, por tudo dito e conhecido, é notório que o transporte
público tal como está,
fere a dignidade das pessoas, bem como está
longe de ser um serviço prestado de forma adequada, apesar de
existir um acervo normativo que define diretrizes claras para sua
operacionalidade.
O
transporte público, apesar de inserido pela EC nº
90/2015 no Artigo
6º da Constituição Federal, como direito
social
que deve ser garantido pelo Estado, segue a lógica dos empresários
que por sua vez buscam a maximização de seus lucros.
Desse
modo, os empresários, com a conivência do Estado e dos
governos, converteram um serviço essencial à efetivação de
outros direitos em mercadoria.
Assinale-se,
ainda, que o Estado apresenta limites para garantir o bem comum
da sociedade e proteger os interesses universais, e
isso
ocorre porque as leis e o próprio Estado atendem
aos interesses da classe social que está no poder, ou seja, o
acervo normativo e o funcionamento da Justiça se operacionalizam
para garantir os interesses econômicos da classe social dominante.
Verifica-se,
ademais, que a luta que os movimentos sociais, estudantis e de
juventude realizam pela redução das tarifas não pode se resumir
exclusivamente à
redução das tarifas. A luta que os movimentos travam deve ser na
verdade por outra concepção de transporte público, no sentido
deste cumprir a
sua essencialidade à vida social e que de fato se constitua como
ferramenta
acessória à
emancipação no espaço urbano. Portanto, os movimentos sociais à
frente dessa temática devem aproveitar as pequenas brechas e
contradições da lei burguesa e ampliar a propaganda, agitação e
organização, sem contudo se enganar a respeito da legislação do
Estado burguês.
Notas
[1]
NAVES,
Márcio Bilharinho. Marxismo
e Direito. Um estudo sobre Pachukanis.
São Paulo: Boitempo, 2000.
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Manifestantes indignados com prisões arbitrárias da PM/PE |
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