Ensaio
Recebido em 23 de dezembro de 2015
Por Evson
Malaquias, professor do Centro de Educação da UFPE.
O leitor pode estar estranhando um título
que nega a democracia na escola estatal. Estranhar por dois motivos: (1) vindo
de um “agitador” político-cultural; (2) porque é óbvio que temos que defender a
democracia. É natural a sua defesa. É até obrigação. Você é a favor da
ditadura? É praxe na linha de pesquisa acadêmica da educação, na gestão e
políticas públicas, na Anped (inclusive no CE) defender a instauração da
democracia na escola estatal. É inerente na linha, a defesa da democracia. Isso
significa dizer que a escola deve construir seu conselho escolar, eleger seu
diretor (mesclado com meritocracia), com prazos estabelecidos e firmado na lei,
etc.
As pesquisas nessa linha
constatam em dada análise que a escola “x” é democrática; em outras, confirmam
que não há democracia. Elas oscilam entre uma e outra, e algumas incluem os
pais como uma “variável interveniente” ou “complementar” em busca da melhoria
da escola. Sempre com boa intenção. Outros estudos avaliam a “democracia” na
escola tendo-se a legislação e a política do Estado como referências centrais.
Se isso ocorre nas pesquisas,
ocorre também nas práticas políticas das universidades estatais. Inclusive aqui
no CE/UFPE. O que se quer dizer com isso? Compreende-se nessa lógica que a
democracia é um agrupamento de pessoas (reunião de conselhos, de pais e
mestres, reuniões departamentais, etc.), processos ritualísticos eleitorais
(eleição de candidatos, elaboração de carta-programa, realização de provas de
conhecimento, etc.), corpus lei que “ordenam a democracia”. A LDB e as leis
estaduais e/ou municipais são recorrentes como amostras para análise.
Ora, tomam o instituído
como realidade. Os conceitos são esvaziados de sentidos e fazem funcionar um
defunto maquiado, tomado como vivo. Esse é o objetivo: transformar os vivos em
mortos e sentir orgasmo com o defunto visto como vivo.
Como o leitor
provavelmente observou, não chamo a escola estatal de “pública”, mas de
“estatal”. Não é uma questão estilística. Ela tem fundamento teórico-conceitual
e político. Não existe escola pública, pois não existe instituição pública; apenas
instituição privada. Não saímos ainda da Casa Grande e Senzala. Se saímos, foi apenas
nos seus aspectos formais: falamos de República (que não é pública), de
democracia (que não é pública), de cidadania (que não é pública), etc. Ou seja,
instituímos um mundo privado com aparência de público. Mas como nos alertou Da
Matta: em toda festa “pública” há um dono.
Essa questão é crucial para
minha interpretação: os “democratas” não são tão democratas assim. E isso não
tem nada a ver com “direita” e “esquerda”. Um que se propala “esquerda” na luta
contra a direita (Dilma versus Aécio, por exemplo) pode se apropriar de
desígnios modernos e não ser tão moderna assim. Não que a “modernidade” seja
grande coisa – ela é sinônimo também de colonizações diversas. Mas
conceitualmente é importante diferenciar, para alguns debates necessários, para
sabermos onde estamos “pisando”.
Os rituais eleitorais não
são rituais. São rotinas. Um ritual, antropologicamente falando, implica uma
carga sacramental, mesmo que mínima, uma carga emocional, adereços, palavras
“mágicas”, personalidades com capital simbólico representativo de uma
coletividade, etc. Uma rotina, não. A rotina são movimentos autômatos, frios, des-erotizados,
repetitivos, etc. Numa eleição, se presentes com certa “emoção” e “sacramento”,
são produzidos mecanicamente com finalidade exclusivamente eleitoral. Ela se
esvazia de paixão. Por quê? Porque não há Eros na classe dominante (ou seus
representantes). Há estratégias, instrumentalizações de seres como “coisas”.
Não há fantasia. Não há sonhos. Há apenas o que se manter. Há pesadelos a serem
mantidos a todos os custos: ganhar a eleição e repartir os cargos e bens
simbólicos e materiais quando “acessar” seus objetivos. O livro de cabeceira da
classe dominante, e principalmente em seus representantes (o servo querendo ser
senhor) é “Maquiavel”.
Mas não Maquiavel da
Itália, mas Chico Heráclio, um Caxias, um Getúlio, um Aécio, um Lula, um
Eduardo Campos, etc. Porque só podemos instituir instituições a partir de uma
tradição histórico-cultural de poder. Se o “fantasma” da Casa Grande não foi
extirpado, ele reaparecerá sobre outras formas, outras capas, etc. Ele emergirá
como o homem-cordial.
Essa interpretação que
seguimos não opõe democracia x ditadura. A ditadura é ditadura, mas a
democracia é, também, ditadura. Agamben já nos alertou que o “estado de
exceção” é expressão da democracia, não sua oposição. Não o seu contrário.
A defesa da democracia é a
defesa da ditadura. A construção de uma outra sociedade é a luta contra a
democracia. Não é à toa que parte dos representantes da burguesia é defensora
intransigente da democracia. O sindicalismo Petista e do PCdoB assumem também
esse discurso. O sindicalismo atual está assentado nessa ditadura.
Não podemos confundir
democracia com conselho escolar e eleição como os elementos indicadores
concretos da realização da democracia. E não dá pra colocar a retórica de
“aperfeiçoamento”, “evolução” da gestão democrática, pois não existe “evolução”
na sociedade. O que existe é a instauração de força criadora para pôr novas
significações que se oponham ao instituído, destruindo o antecedente e dando
formas instituídas ao novo.
A democracia na UFPE/CE é
uma farsa. É uma farsa porque ela não é pública, é privada uma vez que são alguns
docentes que controlam os espaços estatais (órgãos, cargos, representação
simbólica de autoridade, etc.). É rotina. É desprovida de Eros, de dádiva, de
calor humano. Se existe dádiva, é instrumental, utilitária. Não pode ser
diferente: não há nada a construir, nada há sonhar, nada a criar, mas manter.
Manter cargos, espaços acadêmicos “científicos”, status, etc. A maior expressão
disso é a “carta-programa”. Não existem palavras, frases com sentidos que
toquem em alguém. Apenas tópicos, metas a serem atingidas pela gestão. Não se comprometem
com nada. Não incomoda ninguém porque não se posicionam. É o discurso
privatizado. Os administradores vieram aqui para salvá-los da desordem. Os
coronéis não elaboravam discursos. Faziam-se no discurso: as realizações. Ou
seja, a política se transformou em mercadoria, em débito (realizações). E toda
mercadoria é quantificada.
A ruptura com essa
tradição implica uma perlaboração que não é de fácil realização. Há de existir
um desejo que emirja da “alma”, que não seja recalcada, que não tenha medo de
se fazer existir e de ser. Para isto, não há receitas. Está aberta a história.
Para alguns representantes da Casa Grande, a história já acabou. Para esses,
não há Eros, apenas perversão. Tenta-se de tudo para “seduzir” as pessoas com
seus zumbis pintados e maquiados com intenção de desviar e impedir os desejos
coletivos. Tentam convencer que não há saída, que apenas a “democracia” é o
caminho. Logo, eles são os representantes legítimos e inalienáveis.
A defesa a se fazer nesta
conjuntura não é a defesa da democracia, pois ela foi capturada pela morte. Ela
hoje é expressão da morte. Recorre-se ao barroco na política, no mercado, na
cultura, na educação, etc. visando embotar o olhar perlaborado. Um pouco de
criatividade democrática apagou-se quando emergiu com certa força na década de
80. Hoje, resta apenas um palito em fase final de apagar-se. Hoje, não mais
democracia, mas a defesa da liberdade de expressão de opinião, de contestação.
Uma escola (UFPE, por exemplo) democrática, para receber esse nome, precisa ser
livre, autônoma. Ousar, criar, romper barreiras, desescolarizar-se. Essa é a
nossa tarefa na contingência da história. Democracia hoje é rotina. É morte. É
passado que precisa ser enterrado. Que precisa ser enlutado.
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