Ensaio [1]
Recebido em 03 de dezembro de 2015
Por Maria
Orlanda Pinassi, professora da UNESP [Araraquara].
Os casos de Nova Lima (2001), Cataguases
(2003) e Miraí (2007), na Zona da Mata, e de Itabirito (2014), todos ocorridos
em Minas Gerais, deram a Mariana (2015) o protagonismo de uma tragédia
anunciada. Mas, até então, o que conhecíamos nós sobre barragens de contenção
de rejeitos (altamente tóxicos) da atividade minerária? Por que nos
interessaria saber que várias dessas barragens seguem funcionando normalmente
apesar dos sérios riscos de desestabilização estrutural que oferecem? E que MG,
reproduzindo e ampliando uma realidade que é nacional, possui apenas quatro
fiscais para monitorar suas 735 barragens destinadas a tais fins?
Tragédias com essa
magnitude costumam revelar segredos empresariais criminosamente omitidos das
populações direta e indiretamente atingidas por suas atividades. E o Estado, articulado
com o capital em todas suas esferas de ação (federal, estadual, municipal), é o
cúmplice ativo destes crimes de lesa humanidade porque seus órgãos de
fiscalização sofrem de uma deficiência crônica e proposital e porque não são
poucas as artimanhas que cria para penalizar intervenções pequenas ao mesmo
tempo em que facilita e agiliza a emissão de “licenciosidades” ambientais para
projetos de vulto.
O rompimento do dia 5 de
novembro último liberou 65 milhões de metros cúbicos de rejeitos que seguiram
pelos 880 km dos cursos dos rios Gualaxo do Norte, do Carmo e Doce, que atingiram
os estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, que envenenam praias, mar,
manguezais, santuários ecológicos. Os testas de ferro da Samarco, subsidiária
do consórcio formado pela australiana BHP-Billiton e pela Vale Internacional,
empresa responsável pelos eventos relatados, negam-se a assumir a responsabilidade
pelo episódio e pela presença de metais pesados no material liberado, mas análises
preliminares constataram que o nível de toxicidade da lama, contaminada por
manganês, alumínio, zinco, arsênio – por toda a tabela periódica – estaria um
milhão e trezentos mil por cento acima do limite tolerável. As imagens
devastadoras a que assistimos desde a tragédia e as incertezas que pairam sobre
o futuro das áreas e pessoas expostas à lama corrosiva não precisam de
legendas, nem explicações.
O arremate da tragédia de
Mariana se deu com o cinismo em fornecer água com querosene para as famílias
afetadas em Governador Valadares. O desdém é mantido com a represália das duas
maiores mineradoras do mundo às sanções impostas pela justiça que envolvem o
bloqueio de bens e a paralisação das atividades naquela mina de ferro. Alegam,
por isso, não terem recursos para prestar qualquer assistência à população
afetada, para recuperar os danos socioambientais causados e nem mesmo para
pagar os salários dos seus próprios funcionários, ameaçados de demissão a
partir de 31 de janeiro de 2016.
Flagelos da mineração
ocorrem em todo o país a todo instante e envolvem um espectro muito maior de
processos predatórios. Estima-se que cerca de dois mil municípios brasileiros desenvolvam
atividades dessa natureza pelas quais recebem o CFEM – Compensação Financeira
pelos Recursos Minerais. Conforme o MAM - Movimento dos Atingidos pela
Mineração, estima-se ainda que o Brasil possui oito mil minas de exploração
mineral e que para cada uma delas exista uma barragem de rejeitos mais ou menos
letais. Em Parauapebas, município do sudeste paraense que sedia a maior reserva
de ferro a céu aberto do mundo (o Projeto Carajás)[2], apenas uma dessas
instalações, se rompida, tem potencial para despejar muita, mas muita lama
tóxica no rio Parauapebas que é afluente do rio Itacaiúnas que é afluente do
rio Tocantins que é afluente do rio Pará que, por sua vez, deságua no Oceano
Atlântico.
Imensuráveis impactos
sociais e ambientais são e deverão ser sentidos com ainda maior intensidade,
por exemplo, em toda cadeia produtiva do ferro, do cobre e ouro, minérios
crescentemente vitais à atual lógica da produção destrutiva [3], do consumismo
industrial e individual irresponsável, da obsolescência programada e do
desperdício generalizado. Pois, para atender os interesses deste tipo de
desenvolvimento do capital, crateras gigantescas são abertas, florestas nativas
desmatadas, rios assoreados e o monocultivo de eucalipto põe o agronegócio no
circuito para fornecer carvão para os fornos das siderúrgicas; um sem-número de
hidrelétricas, hidrovias, ferrovias e transposição de rios geram a energia
demandada e as vias de escoamento da produção; atrás de tudo um rastro de destruição
da fauna, da flora e da vida de comunidades inteiras de indígenas, quilombolas
e camponeses. Cidades experimentam forte explosão demográfica sendo
inexoravelmente afetadas por miséria, fome, prostituição infanto-juvenil e pela
péssima qualidade da água proveniente de rios poluídos. Tão grave quanto é
constatar que nos territórios controlados pela atividade minerária é recorrente
a incidência de trabalho escravo, de trabalho infantil e de doenças laborais
irreversíveis entre trabalhadores da própria empresa e, principalmente, entre
terceirizados, quarteirizados etc. Nestes locais cresce a violência militar e
paramilitar sobre as populações vulneráveis que ousam insurgir-se contra as
degradações impostas a elas pelo capital e pelo Estado. Para se ter ideia, na
mesma região sul e sudeste do Pará, que testemunhou algumas das mais bárbaras
chacinas políticas do país, como a Guerrilha do Araguaia e o massacre de
Eldorado de Carajás [4], e que mantém uma sinistra tradição de extermínio de
lutadores populares, a CPT denuncia que, somente no ano de 2015, surgiram 125
focos de conflitos de terra com grande possibilidade desse número se ampliar
para 181; 11 trabalhadores foram assassinados e 29 outros figuram nas listas
dos ameaçados de morte. Os fatos exigem que o Estado ative e execute o programa
de proteção às pessoas que “vivem” nestas condições.
A Vale, que ironicamente um dia foi do Rio Doce, carro chefe do desenvolvimento e da (in)segurança
nacional desde Getúlio, deu saltos decisivos durante a ditadura, foi
privatizada por FHC a troco de tostões, transnacionalizada e
estratosfericamente valorizada no mercado de ações. Dos governos do PT recebeu
enormes incentivos fiscais e uma linha de crédito direta do BNDES – a Valepar –
para incrementar seus negócios, um dos quais é potenciar a vocação brasileira
de fornecer matéria prima para o primeiro mundo, lógica em que exporta ferro
para a produção de armamento do complexo industrial militar da China, EUA e
Israel. O Movimento Articulação
Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale vem denunciando, desde
2010, o modo imperativo com que esta empresa explora os recursos naturais e
humanos no Brasil e outros 30 países nos quais atua. Por onde passa, conduz com
êxito a estratégia de subjugar e controlar governos nacionais,
independentemente dos indivíduos e dos partidos que os ocupem.
Neste quadro, as multas
que aqui e acolá a Vale é obrigada a pagar são gorjetas perto de seus lucros
astronômicos. As ameaças de penalização mais severa sobre o setor fingem uma soberania
inexistente do público frente ao privado, de uma autonomia ilusória da política
em relação aos interesses econômicos. E, ainda, os aconselhamentos para que se
imponha uma maior regulamentação sobre a atividade minerária caem na reserva
moral dos crédulos ou desatentos à forte movimentação no sentido da aprovação do
Código da Mineração que constituirá certamente enorme impulsionador à produção
do setor. A aplicação dos itens constantes da Agenda Brasil e da Lei
Antiterrorismo, adequações de nossa política interna às exigências do TISA [5],
do qual não somos signatários mas dependentes, irá garantir que o capital da
Vale e de tantas outras transnacionais se agigante, sem qualquer limite humano,
social, ambiental ou nacional no horizonte.
É assim que, para além de todas as
evidências ameaçadoras da mineração, importantes intelectuais das esquerdas e
líderes de expressivas organizações populares continuam a defender a ideia de
que se trata de uma atividade vital para o desenvolvimento e a soberania do
país
Ora,
que padrão de desenvolvimento é esse que, apesar de pôr em risco a existência
da humanidade, resiste no romantismo desenvolvimentista nacional-provinciano?
Ir à raiz deste necessário
questionamento é ir na direção de uma ruptura absoluta com o sistema de
produção destrutiva que preside a atividade minerária com características tão
flagrantemente perigosas à vida. Por isso mesmo não se pode crer que a solução
para os negócios nefastos da Vale seja sua reestatização, nem a
renacionalização dos seus buracos, da sua lama e seus estragos. Em benefício do
nosso futuro, o desafio da luta efetivamente popular deve ser pela sua absoluta
erradicação e, principalmente, pela erradicação do padrão societário que a
torna tão necessária.
Hoje não há sentido em
falar em desenvolvimento geral da
produção associado à expansão das necessidades humanas. Assim, dada a forma
em que se realizou a deformada tendência globalizante do capital – e que
continua a se impor -, seria suicídio encarar a realidade
destrutiva do capital como pressuposto do novo e absolutamente necessário modo
de reproduzir as condições sustentáveis da existência humana.
István Mészáros. Século XXI – socialismo ou barbárie.
Notas
[1] Esse texto foi escrito com a
colaboração de Raimundo Gomes da Cruz Neto, educador popular do CEPASP - Centro
de Educação, Pesquisa e Assessoria Sindical e Popular, Marabá, PA e Célia
Congilio, professora de Ciência Política da UNIFESSPA, Marabá, PA.
[2] “Na implementação do projeto Carajás, a
meta de exploração imposta pelos militares foi de 10 milhões de toneladas
métricas de minério-ano. Essa produção passou nos anos 1990, principalmente
após a privatização [da Vale] para 109 milhões de toneladas anuais. Com a
efetivação do projeto S11D esse montante passará a 230 milhões de toneladas
anualmente”, Elementos constitutivos do
MAM. Iguana Editorial, 2015 (p.17).
[3] A produção de ferro cresceu 37% nos
últimos três anos em Mariana, MG.
[4] Em abril de 2016, o Massacre de
Eldorado dos Carajás completa 20 anos sem que aqueles dezenove assassinatos e
outras tantas sequelas físicas e psicológicas que marcaram definitivamente os
sobreviventes tenham encontrado a justiça exigida.
[5] Ver a respeito https://wikileaks.org/tisa/ e http://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-grri/tisa-a-pior-ameaca-aos-servicos-ja-vista-5750.html
Texto excelente !
ResponderExcluirExcelente análise! Parabéns!
ResponderExcluirPrezados,
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