14 de outubro de 2015
Por João
Paulino, acadêmico de Direito da UNP, ativista dos Direitos Humanos e militante
da Nova Práxis/PSOL.
A questão da segurança pública está
presente em todos os países e tem realce especial aqui no Brasil devido aos
índices existentes nosso país, pelo fervor das discussões acerca da temática e
pela concentração do assunto nos meios de comunicação. Ao se discutir a segurança
pública, inevitavelmente entra em pauta o necessário debate sobre as polícias,
principalmente a militar. Ela ganha destaque devido a sua maior proximidade dos
cidadãos, haja vista suas as próprias funções. Daí o enfoque dado às suas
atuações, planejamento e estrutura.
A Polícia Militar [PM] no
Brasil tem origem a partir da instituição da Guarda Real no século XIX, que
devido à sua ineficácia em gerenciar as crises, tivera decretada sua extinção,
colocando-se em seu lugar o Corpo de Guardas Municipais Permanentes, que
posteriormente se chamaria Corpo Militar de Polícia da Corte e por fim Polícia
Militar. É de se notar a alteração das feições da Polícia em cada momento da
história do país, principalmente com a estrutura social que se formava através
de cada mudança. Perceba-se que a transição do Império para a República não
possibilitou uma alteração entre as classes dominantes. No entanto, a
complexidade na mudança para República se aperfeiçoou devido, por exemplo, o
êxodo rural e o fim da escravidão. Não à toa se observa que a reforma penal do
código de 1830 trouxe um direito penal do autor e não do fato, delimitando a
concentração da atuação da polícia para determinados grupos sociais. Percebemos
que a relação entre o Direito Penal, a estrutura social do Estado e a atuação
da polícia (em especial, a militar) é sobremodo evidente, haja vista suas
existências, — Direito Penal e Polícia — servirem para manutenção da ordem
institucional estabelecida, obviamente, pela classe dominante.
Para manter esse caráter
de “guardião da ordem institucional”, a Polícia acompanhou as transformações
trazidas pela instauração do conhecido “Estado Novo”, a partir da ascensão e
manutenção de Getúlio Vargas no poder. Aqui, a Polícia atua como principal meio
repressor e de manutenção do regime autoritário getulista. Não diferente foi o
que aconteceu com o Golpe de 64, tendo como única diferença que a Polícia
subordinava-se às Forças Armadas. Cabe ressaltar que a Constituição de 1967
manteve as PM’s como reserva e forças auxiliares do Exército, responsável pelo
patrulhamento ostensivo das cidades.
O papel da polícia só teve
alteração significativa a partir da implantação da Constituição Cidadã,
promulgada em 1988. Carta Política que espraiou sobre todo o Estado brasileiro
as ideias democráticas, inspirada nas Cartas portuguesa e espanhola, que também
foram idealizadas em períodos pós-autoritários. Um pensar na construção de uma
segurança pública cidadã, feita em conjunto com a própria sociedade e em
respeito aos direitos fundamentais. É a partir desse ponto que o papel e
atuação da Polícia deveria ter sofrido não uma reformulação, mas uma verdadeira
revolução democrática das suas estruturas (1).
No entanto, bem como boa
parte da sociedade, a Polícia se manteve fiel a uma estrutura opressiva, de
manutenção do status quo, não permitindo a evolução e mantendo-se
refratária às novas feições do Estado. A longa manus do Estado continuou servindo a uma estrutura sócio-política
de dominação. E cabe aqui ressaltar que essa análise não pode ser observada de
maneira “solitária”, como se fosse algo em si mesma; deve ser observada em um
plano sistêmico (2), em que temos diversos problemas (re)produzidos pelo apego
a paradigmas ainda não superados. Por exemplo, temos diversos direitos que não
foram ainda concretizados; códigos são aplicados, apartados da Constituição e
etc. Tudo isso, devido à obediência a um paradigma que sustenta uma estrutura
de dominação que se reproduz ao longo do tempo, e que já fora tão bem
denunciada por inúmeros ilustres pensadores como Victor Nunes Leal, Caio Prado
Júnior e inúmeros outros, mas que cabe aqui a lembrança especial de Raimundo
Faoro e seu Os Donos do Poder, pois é
a esses donos, de uma sociedade estamental e patrimonialista, que serve todo o
aparato repressivo estatal. Sociedade em que os grilhões saíram dos corpos e
hoje habitam no simbólico, no imaginário. É a partir dessas premissas, que
parte-se para pensar a “Policiofobia”.
O termo foi utilizado para
designar, em literalidade, o medo da Polícia. Fora construído sobre o argumento
de que “medo da Polícia” é artifício ideológico para desmoralizá-la, depois que
os militares voltaram para os quartéis após da redemocratização — a partir do
que foi falado da história da Polícia, esse argumento “cai por terra”. Isso
ocorreria por causa de um “revanchismo tardio” que acaba por sustentar a
“tolerância (e estímulo moral) ao banditismo”. E é a partir dessa inversão de
valores que se instaura a sensação de impunidade que fez “explodir a
criminalidade”. Tudo isso por causa da ideologia das “lutas de classes”. Além
de que os policiais “foram empurrados assim para uma legalidade que, de tão
estreita, virou uma espécie de corda bamba onde se o policial age é acusado de
abuso e caso se omita é acusado de prevaricação”. Basicamente a ideia central é
essa.
Primeiramente, apagar a
intensa atuação da Polícia no período dos regimes ditatoriais é trair a própria
história. Sua atuação foi efetiva e sob comando das Forças Armadas, mais especificamente
do Exército. Além disso, colocar como argumento que a construção do discurso
crítico tem como fulcro um revanchismo que não pôde ser direcionado aos
militares, é desmerecer o nível da discussão sobre segurança; além de ser um
artifício ardiloso que procura deslegitimar o enunciador do discurso
imputando-lhe deméritos para, portanto, destituir do próprio discurso sua
“realidade”. Revanchismo não compõe essa argumentação, que não é defendida
apenas por quem acredita nos ideais das “lutas de classe”, mas por quem tem em
mente a evolução da própria sociedade e a necessidade da defesa contra os arbítrios
estatais. Falar ainda que esse discurso é reforçado pela mídia é ainda mais
sofístico. Afinal, o que vemos são inúmeros programas policiais que “aplaudem”
atuações sanguinárias das Polícias e que disseminam o medo e o ódio. Basta
ligar a TV às 17h e ver o Marcelo [Rezende] ou [José Luiz] Datena.
Atuações desastrosas e de
cariz autoritárias da Polícia como, por exemplo, execuções como as ocorridas
recentemente no RJ que nem mesmo os telejornais tipo Datena conseguiram deixar
de noticiar e criticar são corriqueiras e aterrorizantes. Rodou o mundo a
imagem dos policiais forjando uma troca de tiros com um jovem de uma comunidade,
para depois simplesmente fazerem um auto de resistência (e leia-se: licença
para matar) e voltarem para tranquilidade de suas casas. Nesse caso que acaba
de ser transcrito, muita gente falou: “mas ele tinha ficha (sic)”; e eu
pergunto: e desde quando isso pode ser justificativa para matar sumariamente?
Como os policiais poderiam saber que ali se tratava de um bandido? Ou voltamos
às teses lombrosianas e já temos um “modelo” de bandido? Perceba-se aqui o
risco que corremos ao legitimar essas atuações das nossas Polícias. Colocamos a
nós mesmo em perigo, pois a Polícia tem licença para matar ao seu talante, apesar
de procurar sempre um alvo que segue determinado estereótipo. Até mesmo em
países em que existe a pena de morte, deve ser obedecido o devido processo
legal. Veja-se o caso do brasileiro morto na Indonésia. Cabe salientar aqui,
que não se sustenta aquele argumento de: “isso é coisa de comunista”, pois a
“defesa” gira em torno da presunção de inocência, que é insculpida há mais de
200 anos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (3) que é marco da
Revolução Francesa, e que produz o conhecido Estado de Direito, que é uma
formulação essencialmente burguesa! Perceba-se, portanto, que a questão não é
de construção ideológica, mas de defesa das garantias trazidas pelo devir da
própria história e consagradas na nossa Constituição Federal de 1988, a
propósito do Art. 5º, LVII (4).
Comete um grave erro quem
fala de impunidade ou que a Polícia brasileira não é violenta. Isto é estar
imerso demais no imaginário sem deixar que a realidade “bata à sua porta”.
Chegamos a números do tipo: uma população carcerária que chega a 500 mil presos
(apesar da problemática das prisões preventivas). Sem falar do título de Polícia
que mais mata (e também a que mais morre no mundo), ultrapassando a dos Estados
Unidos – que era tida como a mais violenta. Perceba-se então, que o problema da
segurança é muito mais complexo do que “bandido bom é bandido morto”. Se isso
significasse mais segurança deveríamos ser o país mais seguro do mundo. Mas não
somos, pois o puro medo e o “punir por punir” não funcionam, nem nunca
funcionaram.
É preciso compreender a
segurança pública como um conjunto. O problema não se resolve só com Polícia. Precisamos
mudar a cultura, e isto, só se dá através da implementação de políticas
públicas que permitam o desenvolvimento da sociedade. É preciso que as pessoas
evoluam e encontrem as alternativas e novas possibilidades. É mister que o
Estado chegue aos rincões do país, não através apenas do seu aparato repressor
(como são os casos das UPP’s no RJ), sendo um agente redutor de desigualdades.
Peço que não se entenda
este texto como uma “ode ao ódio contra a Polícia”, pelo contrário. Sempre é
necessário criticarmos algo que está em contraste com o evoluir social, mas é
de se reconhecer a importância e atuações brilhantes de Polícias ao redor do
país; louvar os policiais que trabalham diariamente em condições precárias, com
baixos salários e etc., mas que ainda assim fazem seu trabalho com respeito aos
direitos do cidadão. E que a temática aqui levantada sirva também para repensar
a formação da própria Polícia Militar, que é treinada de maneira sub-humana
(basta ver Tropa de Elite), com base
na violência pura, como se fosse para uma guerra. Eis um problema: quem treina
para ir para guerra é treinado para caçar (e abater) um inimigo, não para lidar
com cidadãos em um ambiente de liberdades. É fundamental, pois, abrirmos as
portas para os novos caminhos, inclusive como possibilidade de tornarmos a Polícia
mais humanizada para os próprios policiais.
A estrada é longa e o
caminho é difícil. Mas não queiramos atalhos, não permitamos o retrocesso e a
relativização de direitos e garantias conquistadas através de árduas lutas ao
longo da história. Tomemos nosso posto de protagonistas, abramos espaço para as
mudanças e para além do imaginário do senso comum, pois este corrói pouco a
pouco, silenciosamente, aquilo que somos: humanos.
Notas
(1) Cabe aqui dizer, que não apenas a Polícia,
mas toda a sociedade brasileira deveria ter se repensado a partir do caráter
transformador que tem a Democracia.
(2) Ao se utilizar o termo “sistêmico” não
está a se fazer referência às teorias desenvolvidas por Niklas Luhmann, por
exemplo. O termo é utilizado meramente como artifício para demonstrar que é uma
problemática complexa, e que mantém relação com outras questões.
(3) Art. 9º: “Todo homem é considerado
inocente, até o momento em que, reconhecido como culpado (...)”.
(4) “Ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
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