Ensaio
10 de julho de 2015
Por Patrício Freitas e Jones Makaveli,
militantes da UJC e do PCB.
“E
em torno estavam aqueles que instilavam horror e gritavam: 'Aí vem o novo, tudo
é novo, saúdem o novo, sejam novos como nós!' E quem escutava, ouvia apenas os
seus gritos, mas quem olhava, via pessoas que não gritavam”.
Bertolt Brecht
Nos anos oitocentos um espectro rondava a Europa. As condições precárias da classe trabalhadora confirmavam a tese de que as revoluções burguesas não poderiam ser suficientes para acabar com a miséria e opressão sobre toda população. Com a revolução industrial, mesmo com o grande avanço das forças produtivas, os homens e mulheres que produziam as riquezas continuavam privados delas. Essa forma ainda embrionária, fantasmagórica, que aterrorizava os senhores burgueses ganhou força e os trabalhadores se organizaram por todo o mundo. Revoltas e revoluções marcaram a história do movimento operário e o espectro se materializava pouco a pouco.
Porém,
nem toda incorporação se concretizou como esperada, pelo menos não aos que
ainda enxergavam esse movimento como algo linear ou isoladamente. Dentre essas
pessoas, sem dúvidas, não estava Marx. O movimento dos trabalhadores ganhou dimensões
além dos piquetes e das carabinas empunhadas por revolucionários apaixonados.
Aos poucos, as greves, as mobilizações e a luta dos trabalhadores foram
conquistando espaços institucionais. Rapidamente grande parte do movimento
revolucionário estava alimentando a esperança em uma estratégia perigosa, ainda
mais perigosa do que os confrontos diretos das históricas barricadas: o
sufrágio universal.
No
prefácio do livro de Marx As lutas de classes
na França, escrito por Engels em 1895, algumas preocupações são esboçadas
sobre o futuro do movimento comunista e a necessidade de pensar novos rumos
estratégicos. Resumidamente, Engels alerta sobre a importância do voto
universal e a possibilidade que a classe trabalhadora adquiriu em relação ao
potencial organizativo através dos espaços conquistados na institucionalidade.
Com as pressões e com o acirramento da luta de classes, a burguesia teve que
ceder a legalização do Partido Social Democrata Alemão, e com essa conquista
houve um crescimento estrondoso dessa organização na Alemanha. Afirmava Engels:
“Até mesmo na França, os socialistas cada vez mais estão se dando conta que não
há perspectiva de vitória duradoura para eles se não ganharem primeiro o apoio
da massa popular, isto é, nesse caso, dos camponeses” (ENGELS, 1895, p.27).
Para
a concretização desse fato, acertadamente, Engels faz uma análise sobre o
desenvolvimento do aparato repressivo do Estado e como se tornava cada vez mais
difícil o enfrentamento direto de minorias conscientes. É bem verdade que ele, um
dos fundadores do marxismo, estava diante de um fenômeno até então jamais visto:
o Partido Social Democrata Alemão somava 2 milhões de eleitores nas urnas, além
das mulheres que não tinham o direito de votar. O crescimento do partido
possibilitava a divulgação das ideias comunistas e isso poderia gerar um
acúmulo de forças para a luta revolucionária.
Mas,
parafraseando o próprio Engels na citação indireta que faz à célebre frase de
Hegel, “A ave de minerva só levanta voo no final da tarde”: “A visão panorâmica
clara sobre a história econômica de determinado período nunca será simultânea,
só podendo ser obtida a posteriori (...)” (ENGELS, 1895, p.10).
Da
mesma forma que Engels se utiliza dessa frase para pedir licença a Marx e
traçar um novo olhar sobre as ideias de seu livro, repetimos algo para seu
remetente. Não podemos negar a contribuição desse texto, não podemos ignorar o
quanto de realidade está escrito em suas linhas, mas é preciso recuperar as
análises de Marx para compreender todo o processo. É preciso ver o que a
história nos ensinou hoje, cento e vinte anos depois.
O
movimento que tomava corpo na Europa no final do século XIX e início do século
XX, infelizmente, não tinha Engels como um dos seus principais formuladores. Havia
dois teóricos no pilar da socialdemocracia, Eduard Bernstein e Karl Kautsky. A
teoria formulada por esses dois senhores se colocava enquanto a revisão da obra
de Marx, superando aquilo que já estaria ultrapassado em seu pensamento: a revolução
socialista e a teoria da destruição do Estado burguês. O movimento socialdemocrata
se comprometeria em traçar reformas no Estado burguês a fim de atingir o
socialismo através dele (Estado burguês). Porém, essa via implicava em diversos
problemas e as soluções dadas não passavam de falaciosas, como já denunciava
Rosa Luxemburgo no seu Reforma ou
Revolução? Bernstein afirmava que através do crédito, dos sindicatos e dos
cartéis, poderíamos desenvolver os instrumentos necessários para “humanizar” o
capitalismo.
Sim,
isso mesmo! Através dos grupos mafiosos que conhecemos hoje enquanto cartéis,
através do aparelhamento dos sindicatos e do sistema de crédito enquanto
amenizador da crise capitalista. Bernstein dizia que por meio da estabilidade
da economia capitalista, os trabalhadores poderiam desenvolver seus meios de
vida de tal forma que chegariam ao socialismo pulando a etapa da revolução.
Mas,
o movimento socialdemocrata não é a expressão pura de ideólogos. Ele é reflexo
do próprio capitalismo, que precisava de um mecanismo de apassivamento da
classe trabalhadora, tendo seus pilares ameaçados pelo movimento comunista. Os
resultados da socialdemocracia foram desastrosos! A posição favorável do
partido alemão em relação à Primeira Guerra Mundial, a perseguição dos
revolucionários, o apoio ao colonialismo na África e Ásia e o assassinato da
própria Rosa Luxemburgo.
Contudo,
a estratégia que já surge como farsa, reaparece enquanto tragédia em diversos
momentos posteriores. O que falar do Eurocomunismo e o desenvolvimento do
Estado de Bem-Estar Social na Europa pós-Segunda Guerra Mundial? E da falácia
do ideal revolucionário defendido por grande parte dos grandes partidos da
época, em destaque o Partido Comunista Italiano? Através da própria socialdemocracia,
o capitalismo se reorganizou, instaurou seu plano neoliberal e a pseudoestratégia
virou referência pelo globo.
No
nosso caso mais próximo, o petismo é um exemplo claro disso. A criação do
Projeto Democrático Popular (PDP) aparece negando as heranças da esquerda
brasileira vinculada aos comunistas, negando a socialdemocracia, embora
admitindo sua influência, negando o sindicalismo pelego e as experiências
passadas. Embasava-se no novo sindicalismo, em uma nova esquerda, em um novo
socialismo: o socialismo petista. O projeto consistia na formação de um acúmulo
de forças perante a sociedade civil, da conquista institucional do Estado
burguês para cumprir as tarefas que a burguesia havia abandonado e a possibilidade
de se chegar ao socialismo.
Veja
bem, embora negue todo o passado, clame pelo novo, parece que a estratégia da
socialdemocracia foi maquiada. O projeto nacional defendido pelos comunistas
anteriormente ainda se revela em muitos aspectos e o discurso foi mostrando
suas falhas através da história e dos equívocos endêmicos dessas ilusões. Após
sofrer diversas metamorfoses na sua concepção de 1987 (Encontro petista onde é
traçado o PDP), o PT assume o poder estatal e pula as reformas falaciosas que
possibilitariam a execução do seu projeto. Ironicamente, sem meandros, assina a
Carta ao Povo Brasileiro – ou aos banqueiros, se preferirem – e já deixa claro,
desde o início da sua gestão, do lado de quem se encontra seus reais
interesses.
Mais
de uma década após a sua primeira vitória nas urnas, depois de tantos
malabarismos, vê o seu governo em derrocada. Nesse processo de busca por uma
nova alternativa, o discurso inflamado da “nova” esquerda – mais uma dessas
velhas novidades – espelha-se nos acontecimentos internacionais. Busca a
legitimidade de seu projeto e a recuperação do PDP.
Esse
movimento, mesmo que nem sempre seja resultado de ações conscientes de suas
práticas, reflete a naturalização da sociedade capitalista, suas formas
mercadológicas, sendo a expressão da consciência reificada, tentando negociar
com a própria burguesia uma estabilidade do plano social. Tornou-se
característico da socialdemocracia a camuflagem, os discursos de negação das
suas inspirações. Com a crise econômica mundial que se inicia em 2008, o
capitalismo vê o seu modelo de acumulação em ruínas. Também o Estado de
Bem-Estar Social, fruto da reestruturação de sua segunda crise, assim como a
sua estrutura de supremacia do capital financeiro.
Por
tudo isso o debate sobre a social democracia continua atual por termos grandes
forças de “Esquerda” em vários lugares do mundo que persistem reivindicando as
ilusões desse projeto e servindo como um instrumento apassivador no seio da
classe trabalhadora e dos oprimidos de forma geral. Merece destaque na atual
conjuntura o Syriza na Grécia e o Podemos na Espanha.
Ao
inserirmos o Syriza e o Podemos na tradição socialdemocrata não estamos negando
o elemento de “novidade” dessas organizações. Ambos surgiram depois de um amplo
processo de descrédito dos partidos tradicionais, apostam em novas formas de
ação de rua e comunicação (com destaque para o uso de redes sociais e ocupações
lúdicas de prédios públicos), tem raízes em movimentos de rua “horizontais” e são
frutos da própria conjuntura da crise capitalista. Contudo, os elementos de “novidade”
não devem fazer-nos perder de vista a continuidade essencial entre a socialdemocracia
clássica e seus avatares atuais. Senão vejamos.
Syriza
e Podemos partem de uma crítica politicista à situação dos seus respectivos
países. O centro do debate para eles não é uma crítica da economia política e o
domínio dos monopólios capitalista na economia, mas sim a falta de democracia,
cidadania, participação política, etc. Para essas organizações o principal
problema a ser enfrentado é como reativar a cidadania e a participação
política, considerando que assim, finalmente, os problemas que dilaceram o povo
trabalhador – como a austeridade pró-monopólios – serão destruídos.
Nessa
perspectiva a própria forma política do Estado burguês não é questionada e nem
sua funcionalidade ontológica com as relações de produção dominantes. Como
Syriza e Podemos são hegemonizados pelas camadas médias empobrecidas com a
austeridade e ressentida com a perda do seu padrão de vida, a ideologia
politicista e cidadanista que quer “democratizar a vida” representa de forma
perfeita a consciência de classe desses setores:
“O caráter peculiar da socialdemocracia
consiste em exigir instituições democrático-republicanas, não como meio de
abolir ao mesmo tempo os dois extremos, capital e trabalho assalariado, mas
para atenuar o seu antagonismo e convertê-lo em harmonia. Por diferentes que
possam ser as medidas propostas para alcançar esse fim, por muito que possa
revestir por representações mais ou menos revolucionárias, o conteúdo permanece
o mesmo. Esse conteúdo é a transformação da sociedade pela via democrática, mas
uma transformação dentro do quadro da pequena burguesia. Não se deve ter a
limitada ideia segundo a qual a pequena burguesia quer impor, por princípio, um
interesse egoísta de classe. Ela crê, ao contrário, que as condições
particulares de sua emancipação são as condições gerais fora das quais a
sociedade moderna não pode ser salva nem pode evitar a luta das classes” (MARX,
2008, p.246) [1].
Uma
análise rápida dos discursos de Tsipras e Pablo Iglesias deixa claro essa
perspectiva. Esse discurso politicista esconde o que é essencial: o conflito
irreconciliável de classes, o domínio dos monopólios capitalistas e o caráter
de classe do Estado burguês materializado em sua forma política. Assim como a
socialdemocracia clássica via o parlamentarismo como o meio de emancipação do
proletariado através do mítico 51% dos votos (a caricatura da ideologia socialdemocrata
defendeu que quando o partido operário tivesse a maioria no parlamento teria
início à transição socialista), o Syriza e o Podemos veem as instituições
parlamentares como o meio de conciliar todas as classes num projeto “socialmente
justo” e “democrático”.
Mas
a semelhança com a socialdemocracia clássica não para por aí. Georg Lukács
percebeu que depois do levante de 1848, conhecido como Primavera dos Povos, o
pensamento burguês entra numa fase de “decadência ideológica” perdendo o caráter
revolucionário do período anterior. Uma das manifestações dessa decadência é a
crítica da economia-política tirar o cerne analítico das relações de produção e
centrar-se na esfera da distribuição, como se ela fosse independente da
produção. O movimento operário sempre viveu uma intensa luta ideológica pelo
predomínio de ideologias pequeno-burguesas e proletárias, e uma das expressões
orgânicas da ideologia pequeno-burguesa é centrar suas críticas na esfera da
distribuição, na desigualdade social, e não na propriedade privada e na
apropriação privada da riqueza socialmente produzida.
Syriza
e Podemos repetem essa tônica. O programa econômico de ambos não passa de uma
reedição do velho programa social democrata, mas com uma pequena diferença: o
programa do Podemos consegue ser mais rebaixado que o do Syriza. A organização
de Pablo Iglesias excluiu a nacionalização de setores estratégicos da economia
e a nacionalização dos bancos (nesse ínterim a defesa não passa de uma
regulação mais forte). Para ambos, a União Europeia é um bloco bom, mas que
precisa apenas ser democratizado, explicitado uma incompreensão brutal do
domínio dos monopólios sobre os países da União Européia. É fundamental ouvir o velho Marx nesse ponto:
“O socialismo vulgar (e,
posteriormente, por sua ver, uma parte da democracia), na esteira dos
economistas burgueses, considera e trata a distribuição como algo independente
do modo de produção e confere ao socialismo uma tônica que gravita em torno da
distribuição. Uma vez que as relações reais foram elucidadas há muito tempo,
por que retroceder?” (Marx, 2010, p.109) [2].
Contudo,
nesse quesito é importante estabelecer uma mediação tática. É evidente que uma
organização política não pode sempre apresentar o programa máximo independente
da conjuntura política; em vários momentos é taticamente importante defender
programa redistributivo; porém, o partido deve estar consciente que isso é uma
medida tática (não estratégica) e limitada pela conjuntura. Ao mesmo tempo,
numa conjuntura de forte enfrentamento quando a hegemonia burguesa está em
crise (como na Venezuela, Grécia, Espanha, Portugal, etc.) é uma ação
estrategicamente errada, e às vezes contrarrevolucionária, apresentar o
programa rebaixado como a solução para todos os problemas do povo trabalhador.
Mesmo
com todos esses limites, por que setores da esquerda brasileira, com destaque
para o PSOL, fazem uma divinização acrítica do Syriza e do Podemos? Temos uma
hipótese formulada. Depois da falência do Projeto Democrático-Popular do PT, os
partidos que não romperam estrategicamente com esse partido – como o PSOL –
precisam de outra fonte de legitimação do seu programa. Eles querem fazer o
mesmo que o PT, mas afirmam que dessa vez vai dar certo.
O
Syriza e o Podemos caem como uma luva nisso. Luciana Genro nas palestras que
faz pelo Brasil afirma sempre que o importante é que “um partido de esquerda
ganhou a eleição com um programa de esquerda” e que “se vai conseguir aplicar
ou não é outra coisa... a situação é muito difícil”. A lógica do raciocínio é
explícita: independente ou não de aplicação do programa (notem a ausência de
questionamento do conteúdo do programa), o importante é ganhar a eleição, a
prioridade absoluta da institucionalidade “dá certo”.
É
tarefa fundamental dos comunistas analisar concretamente a conjuntura política
da Europa, a composição de classe dessas novas organizações, seu programa e o
papel que cumprem na luta de classe. Nem aceitação acrítica e nem sectarismo
estéril. Contudo, entre as tarefas fundamentais dos comunistas está o combate às
ideologias não proletárias no seio do proletariado. E a socialdemocracia é um
dos maiores cânceres históricos que conhecemos.
Não
se pode assinar uma folha em branco, principalmente quando a confiança nessa
estratégia já nos mostrou por anos as suas implicações. É preciso organizar os
anseios de nossa classe nesse momento, impulsionar para lutas que avancem no
sentido de transcender as velhas estruturas. Essa possibilidade não cabe na
estratégia socialdemocrata. Nenhuma ilusão deve ser alimentada. A luta de
classes não permite qualquer aceitação acrítica da socialdemocracia,
principalmente num momento de crise mundial capitalista. Só através de
verdadeiras lutas anti-imperialistas, anticapitalistas, rumo ao socialismo,
podemos dar as respostas necessárias para superação dessa crise societária que
é endêmica ao capital.
Bibliografia
MARX,
Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte.
In: MARX, Karl. A revolução antes da revolução. São Paulo: Expressão Popular,
2008.
__________
As lutas de classes na França de 1848 a
1850. In: MARX, Karl. A revolução antes da revolução. São Paulo: Expressão Popular,
2008.
MARX,
Karl. Crítica ao Programa de Gotha. L&PM
Pocket, 2010.
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