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Edição brasileira (Boitempo Editorial) de 2015 |
Resenha [*]
Recebida em 28 de julho de
2015
Por Maria Cristina Soares Paniago, Profª da
Faculdade de Serviço Social – UFAL.
Nesse fevereiro de 2015, mais um livro do filósofo
húngaro marxista, István Mészáros, chega às livrarias no Brasil. Fato que se
tornou corriqueiro, dada a enorme difusão de seu pensamento entre nós [1], realizada
de forma mais intensa a partir da publicação de sua obra maior, Para além do capital – rumo a uma teoria da transição, em 2002.
Trata-se do A montanha que devemos
conquistar, cujo tema principal é a crítica radical ao Estado e à função
vital que exerce para a reprodução do sistema do capital, sob efeito da crise
estrutural do capital e sua abrangência global. O livro está dividido em sete
capítulos. Conta ainda com dois apêndices, sendo que o primeiro é uma
republicação do capítulo 13 – Como
poderia o Estado fenecer?, do Para
além do capital, e o outro contém uma entrevista realizada com o autor, por
Eleonora de Lucena, em 2013, publicada, à época, na Folha de São Paulo - Caderno
Ilustríssima. Logo na Introdução, Mészáros nos alerta para o fato de que este
livro é parte de um estudo mais completo em andamento, que constituirá um
“volume vindouro” sob o título de “Critique
of the State” (Mészáros, 2015, p.15).
Recentemente, a Monthly Review Press (New York, 2015)
publicou, do mesmo autor, The necessity
of social control, cujo título remete a um dos títulos já publicado no
Brasil, em 1987, pela Ensaio (A necessidade
do controle social) [2] num pequeno formato; este último corresponde apenas
ao primeiro capítulo, em um total de doze capítulos neste formato mais recente.
O seu décimo segundo capítulo, sob o título de “The mountain we must conquer: reflections on the state”,
corresponde ao livro que ora conhecemos no Brasil - A montanha que devemos conquistar - acrescido dos dois apêndices
acima mencionados.
Estas duas publicações quase simultâneas, nos permitem
dirimir toda a dúvida que possa ser disseminada entre nós sobre a relação entre
o título do livro no Brasil – A montanha
que devemos conquistar – e a concepção crítica do autor sobre a essência
histórico-ontológica do Estado e de seu papel no processo de transição para uma
sociedade que supere o capital, e todas as formas sociais, políticas e
econômicas que o constituem.
Na ocasião do lançamento de A montanha que devemos conquistar no Brasil foi publicada uma
entrevista feita com Mészáros pelo jornal O
Globo (21/02/2015) [3], que causou um certo desconforto aos leitores mais assíduos
do autor. Por ainda desconhecerem o conteúdo do livro que acabava de chegar às
livrarias, estranharam algumas formulações sobre o Estado redigidas com a pena
do jornalista que o entrevistou. Soma-se a isso uma suspeita interpretação
sobre o título do livro, no qual aparentemente se encontrava a ideia de que Mészáros
estaria defendendo a “conquista” do Estado no capitalismo – “A montanha que
devemos conquistar” – como meio para se chegar à superação do capital e de suas
iniquidades e desumanidades crescentes. Além disso, de acordo com as palavras
do jornalista, “o filósofo defende a 'democracia substantiva', com a desconcentração
do poder de decisão das mãos dos Estados”. Ou seja, igualdade substantiva seria
compatível com a permanência do Estado, com
menos poder. Ideia jamais formulada por Mészáros.
Aqueles que leem Mészáros sabem a densidade, a profundidade
e a complexidade do seu pensamento, o que pode, numa leitura apressada levar o
leitor a perder-se entre equívocos e imprecisões, ao ponto de poder contrariar suas
ideias já conhecidas. Essa dificuldade provocou uma reação ainda mais incômoda
em razão do debate, no Brasil, sobre a eficácia e o acerto da ação política dos
trabalhadores em relação ao Estado capitalista, no sentido de realizar sua
emancipação do capital. Debate este, na conjuntura atual, enormemente
influenciado por ideias reformistas que pregam a possibilidade de se mudar o
caráter de classe do Estado, capturá-lo e colocá-lo a serviço dos interesses de
classe dos trabalhadores. A ideia de “conquistar” o Estado, mantidas as demais
condições de reprodução ampliada do capital, causou estranheza porque em todo o
Para além do capital a
impossibilidade de se controlar o capital por mediações políticas e de se
realizar as reivindicações emancipatórias dos trabalhadores no âmbito do
sistema é exaustivamente demonstrada por Mészáros. Além disso, constitui uma de
suas contribuições seminais a crítica radical ao sistema do capital e a defesa
da necessidade urgente de se construir alternativas a ele, evitando-se, assim,
o risco real de destruição da humanidade e a degradação ameaçadora da natureza.
Lendo-se A
montanha que devemos conquistar, e recuperando-se o cerne das ideias ali
desenvolvidas, pode-se concluir que toda ressalva de teor reformista ao livro
(ou à controversa entrevista de O Globo)
deve ser prontamente descartada.
Todavia, não temos como deixar de considerar que o
título do livro colaborou para formulações apressadas e equivocadas, especialmente,
estimuladas pela entrevista de O Globo.
Conquistar a montanha, no caso o Estado visto como “um obstáculo gigante”,
sem referência à necessidade de superação dos demais elementos que constituem o
sistema dominante (capital e trabalho) é uma contradição estranha ao pensamento de Mészáros.
Contradição que pode ser dirimida na continuidade da leitura da própria
entrevista, pois em seguida, Mészáros passa a defender a tese de Marx da
necessidade do “fenecimento” do Estado (“Dizer que o fenecimento do Estado é
necessário significa apenas que se trata de uma condição vital para a solução
dos problemas em jogo”) (O Globo,
2015). Mészáros exclui, ainda, toda a viabilidade das teses reformistas a
respeito do Estado ao afirmar que a
ideia de que é
possível usar a ‘sociedade civil’ contra o poder do Estado, na tentativa de
superar as desigualdades estruturalmente arraigadas e saná-las de forma
duradoura, é extremamente ingênua, para dizer o mínimo. Assim como as ONGs,
essas organizações pateticamente limitadas que dependem, para o seu
financiamento e funcionamento, dos recursos concedidos pelo Estado. O Estado é
a estrutura política global de comando do sistema capitalista em qualquer uma
de suas formas conhecidas ou concebíveis (O
Globo, 2015).
Até aqui
pudemos comentar, no interior da própria entrevista de O Globo, os desacertos quanto à exposição das ideias de Mészáros contidas
no livro lançado no Brasil. Mas como referido anteriormente, o título do livro
tornou-se um chamariz ao provocar dúvidas em leitores incautos ou naqueles que
sempre demonstraram enorme intolerância à atitude crítica do autor no exame da
história das lutas emancipatórias empreendidas pelo movimento internacional dos
trabalhadores, e pelos marxistas em geral, no século XX. Como também uma resistência
à convocação feita por Mészáros para a urgência de se realizar uma autocrítica
profunda dos erros do passado, capacitando-nos, assim, a recriar meios eficazes
para um exitoso combate de classe dos trabalhadores que os possa levar à
realização plena da liberdade e da igualdade buscada, somente possíveis numa
sociedade sem classes.
Desde o Para além do capital observa-se uma
profusão de críticos de Mészáros, com base em afirmações infundadas, ou
críticas injustificadas, uma vez que não são resultantes de numa leitura rigorosa
que o livro exige, tanto para se aceitar ou rejeitar a crítica da economia
política para o século XX, sob forte efeito da crise estrutural do capital, elaborada
por Mészáros, a partir de Marx e de Lukács.
Nesse sentido,
no intuito de evitar novas confusões sobre a produção mais recente do autor,
cabe aqui mencionar algumas outras passagens que possam explicitar os múltiplos
significados do título - A montanha que devemos conquistar.
O objetivo central
do livro é realizar a “crítica radical do Estado, no espírito marxiano”,
portanto, com vistas ao “fenecimento do próprio Estado”, pois Mészáros
considera-a “uma exigência literalmente vital do nosso tempo”. O Estado, enquanto
“modalidade historicamente estabelecida de tomada de decisão global afeta mais
ou menos diretamente a totalidade das funções reprodutivas da sociedade”. Com o
aprofundamento da crise estrutural do capital passa a ocupar um espaço cada vez
maior para cumprir a função de garantir as condições mais adequadas à
reprodução acumulativa e expansionista do sistema do capital. Neste sentido,
segundo Mészáros, o Estado se transforma em um “obstáculo” do tamanho de uma
montanha, diante da tentativa de “transformação positiva tão necessária de nossas
condições de existência” (Mészáros, 2015, p.28/16).
Ao abordar a
urgência de se elaborar uma crítica radical do Estado, o autor alerta para o
fato de que não podemos visar apenas uma superação (a partir ou) do Estado,
pois ele somente pode ser compreendido por meio de uma “visão combinada de sua
inter-relação tríplice”: capital, trabalho e Estado. Por ser parte constituinte
“da base material antagônica do capital não pode fazer outra coisa senão
proteger a ordem estabelecida, defendê-la a todo custo, independentemente dos
perigos para o futuro da sobrevivência da humanidade”. Concebendo esta
determinação, na preservação da inter-relação alienada e desumana
historicamente constituída entre capital, trabalho e Estado, é que vai expor a
razão de o Estado “representa[r] um obstáculo do tamanho de uma montanha [e] que
não pode ser ignorado”. Ainda mais, sob
o efeito agravante da crise estrutural do capital “o Estado se afirma e se
impõe como a montanha que devemos escalar e conquistar” (Mészáros, 2015, p.28-29).
Quando se
refere ao Estado, está falando não do Estado “tal como o conhecemos, como
formações históricas do capitalismo”, segundo a matéria de O Globo, mas do Estado enquanto tal, para além das “variedades
particulares do Estado capitalista”. Como também esclarece que não se trata de
derrubar ou abolir o Estado, pois ele não pode ser superado, enquanto não se
superar a ordem social que o requer como condição de sua existência, qual seja,
aquela regida pelo capital, que necessita da crescente e contínua exploração do
trabalho. Como já argumentou no Para além
do capital, capital, trabalho e Estado se sustentam mutuamente – são “três
pilares interligados”. “Nenhum deles pode ser eliminado por conta própria.
Tampouco podem ser simplesmente abolidos ou derrubados” (Mészáros, 2015, p.29).
Assim, expande
o significado da metáfora mencionada no título do livro, pois afirma mais adiante
não ser “suficiente escalar a montanha em questão, visando unilateralmente a
derrubada do Estado capitalista dada como resposta para a destrutividade que se
desdobra em todas as esferas da vida social”. Dilui qualquer veleidade
democrática de mudança gradual e de luta intestina no interior do Estado,
acrescentando que os problemas que enfrentamos com o “aprofundamento da crise
estrutural do capital (...) não são passíveis de uma solução viável dentro de
seus termos de referência institucionais/limitados”. Retoma a ideia da
articulação necessária entre os componentes vitais da ordem existente, e
acrescenta, a
perigosa
montanha confrontando a humanidade é a totalidade combinada de determinações
estruturais do capital que deve ser conquistada em todas as suas dimensões
profundamente integradas. É claro que o Estado é um componente vital nesse
conjunto de inter-relações, tendo em vista o seu papel direto e, agora,
avassalador na modalidade necessária de tomada de decisão global (Mészáros,
2015, p.29).
A presença do
Estado é, hoje, mais requerida, ainda que seu papel remediador das contradições
atuantes na operatividade do sistema do capital não possa lograr os mesmos resultados
positivos como pôde de alguma forma fazer no passado. Para Mészáros “os
corretivos da formação do Estado [do] [4] capital sempre foram problemáticos, mesmo na fase ascendente
de desenvolvimento do sistema, mas na fase descendente, eles se tornaram cada
vez mais aventureiros/arriscados”. Pois,
lembra o autor, que o Estado sempre atuou dentro de “limites bem demarcados, já
que seu mandato primordial não era a superação,
mas a preservação da centrifugalidade
competitiva do capital” (Mészáros, 2015, p.103-104).
A intensidade
da crítica radical do Estado, e a defesa da tese da necessidade do “fenecimento
do Estado” estão especialmente desenvolvidas no capítulo 7 (“A ordem sóciometabólica
e o Estado em falência”). É nele que o autor adiciona o que deve conter, e ser,
uma alternativa socialista, que vise a superação do sistema do capital e de
todos seus constituintes vitais, tornando-a, assim, sustentável e duradoura.
Toda a produção teórica do autor tem por objetivo apontar os caminhos, e evitar
os descaminhos, que o movimento histórico dos trabalhadores tem buscado para
eliminar a exploração do trabalho, e instaurar a “igualdade substantiva”, assim,
iniciando a verdadeira história da humanidade.
Alerta o autor,
que isso não se dará detendo-nos apenas nos aspectos políticos dos confrontos
de classe, uma vez que a “estrutura e
comando material do capital” é apenas “complementada,
e não fundada, no Estado enquanto uma
estrutura abrangente de comando político do sistema”. Evidencia, com base nisso,
que “o problema da auto-emancipação do trabalho não pode ser enfrentado apenas
(nem principalmente) em termos políticos”.
A libertação do trabalho da relação de subordinação ao capital, como
também ao poder do Estado, só é possível “se todas as funções de controle do sóciometabolismo
(...) forem progressivamente apropriadas e positivamente exercidas pelos
produtores associados”. O que exige uma viragem de época genuína na história.
Para Mészáros, as “ideias socialistas são (...) mais relevantes hoje do que
jamais foram” (Mészáros, 2015, p.171/187).
A exposição dos
fundamentos que revelam as formas de existência do “Estado enquanto tal” e a
necessidade de sua superação, tanto como a do capital e do trabalho abstrato
(capítulo 7) foi antecedida por uma crítica às formulações liberais clássicas, às
democráticas contemporâneas e a Hegel (capítulos 1, 3, 4, 5 e 6). A análise ali
apresentada visa desvendar a falsidade, e os limites teoricamente
intransponíveis, das alegações legitimadoras do Estado moderno, seja na ilusão
da igualdade jurídico-legal, seja no “canto do cisne não intencional de Hegel”
e seu Estado Ético, bem como a falsa polêmica comparativa entre os benefícios
da democracia representativa e/ou da democracia direta, contra as quais ele
define a prioridade emancipatória da democracia substantiva. Dedica um capítulo
específico (capítulo 2) a Marx, no qual recupera os fundamentos do Estado formulados
por ele, juntamente com a tese do fenecimento do Estado.
Esses
capítulos, em vista do pequeno número de páginas que contêm, nos leva a crer
que são apenas a enunciação daqueles elementos fundamentais que, mais
desenvolvidos, irão compor o “volume vindouro” de uma Crítica do Estado, o que tem ocupado de forma intensa a vida de Mészáros
em nossos dias.
Assim ele
termina a entrevista publicada no presente livro como segundo apêndice - ao ser
indagado sobre “qual é seu plano para o futuro”, diz ele: “Continuar
trabalhando em projetos de longo prazo que dizem respeito a todos nós” (Mészáros,
2015, p.188). Aguardamos
ansiosos pelo resultado!
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István Mészáros |
Notas
[*] Publicada
com permissão da autora. Postada originalmente em www.marxismo21.org
[1] O
conhecimento, no Brasil, da produção teórica do autor data de 1981, quando foi
publicado pela Zahar Editores o seu livro Marx: a teoria da alienação, depois reeditado
pela Boitempo Editorial, em 2006. Alguns livros foram também publicados pela
Editora Ensaio, os quais, posteriormente, foram igualmente reeditados pela
Boitempo Editorial, ou incorporados ao Para além do capital (obra originalmente
publicada em inglês no ano de 1995). Este último, desde 2002, já teve 3
reimpressões, uma edição revista em 2011, e mais uma reimpressão em 2012 (Mészáros,
2015, p. 180).
[2] Também
publicado pela The Merlin Press (London), em 1971.
[3] Depois de
concluída esta resenha saiu uma nova matéria sobre o livro recém lançado (Folha
de São Paulo - 09 de maio de 2015), com equívocos e incompreensões ainda mais
injustificadas a respeito das ideias de Mészáros. A matéria de O Globo, aqui mencionada, pode ser
encontrada em versão completa no blog da Editora Boitempo.
[4] Aqui
preferimos substituir a preposição “no”, da tradução para o português, pela
preposição “do”. Nos parece corresponder melhor à relação entre Estado e capital
como aparece no original em inglês – “capital’s
state formation”. A respeito da tradução para o português notamos diversas
ocorrências desta ordem, e certa inconstância na tradução de termo mais
importante teoricamente, tal como “downward equalization of the differencial
rate of exploitation”, traduzido como “equalização descendente da taxa de
exploração diferencial”, na maioria das vezes. Com isso, Mészáros, está se
referindo, como menciona na entrevista (Apêndice 2), a uma equalização
descendente – não no sentido de diminuição -
mas em relação à aproximação entre os níveis de ganhos da classe
trabalhadora da “metrópole” e dos países “periféricos (Mészáros, 2015, p.103/319
em inglês, 181). De fato, o que ele quer sinalizar é a equalização entre as
taxas diferenciais de exploração no conjunto do mundo globalizado como um dos
efeitos da crise estrutural do sistema. John Bellamy Foster, em sua apresentação
do livro já mencionado, publicado pela Monthly Review Press, ressalta que
junto à tendência à intensificação da taxa de exploração, Mészáros, também se
refere a ela como “uma equalização descendente” (“downward equalization”), o
que para Foster pode ser entendida “do ponto de vista dos salários dos
trabalhadores, e, assim, uma corrida para o fundo no mundo todo”, com uma
redução global dos custos do trabalho (Mészáros, 2015a, p.15).
Referências bibliográficas
Mészáros, István.
A montanha que devemos conquistar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.
_________________. The necessity of social control (e-book). New York: Monthly Review
Press, 2015a.
O Globo. “Filósofo István Mészáros analisa ascensão de novos
partidos na Europa, como Syriza e Podemos”. Entrevista realizada por Leonardo
Cazes. Publicada em 21 de fevereiro de 2015, Rio de Janeiro. Acesso em 21 de fevereiro.
Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/livros/filosofo-istvan-meszaros-analisa-ascensao-de-novos-partidos-na-europa-como-syriza-podemos-15395541
Estou fazendo a leitura dessa obra de Mészáros, o qual suas palavras tornem-sem pertinentes para melhores compreensão.
ResponderExcluirEstou fazendo a leitura dessa obra de Mészáros, o qual suas palavras tornem-sem pertinentes para melhores compreensão.
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