Resenha [1]
31 de março de
2015
Por Betto della Santa, jornalista,
tradutor, trabalhador em educação na Universidade Estadual de Londrina (UEL),
recém-doutor em Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e
leciona Mundo do Trabalho, Comunicação Popular e Cultura Operária no Centro de
Educação, Comunicação e Arte (CeCa).
«Foi
bonita a festa pá...
Fiquei contente.
Manda
novamente
Àlgum
cheirinho, d’alecrim»
(C.B., s/d).
Tanto Mar é o
que separa o Brasil de Portugal. A canção popular de Chico Buarque não deixa de
ser a tradução poética de uma distância espacial. Mas as coordenadas históricas que separam a ditadura militar brasileira da
revolução socialista portuguesa desenham o arco de uma, tanto maior, «discordância
de tempos». Essa bienal rubra – de
Portugal – coincidiu com os anos de
chumbo, no Brasil. E não poderia
haver maior desencontro. É com esses versos, nada obstante, que a jovem
historiadora – Raquel Varela – dá início à narrativa de História do Povo na Revolução Portuguesa (1974-1975). Ela mesma
oferece a oceanografia para uma marejada Portugal-Brasil. Por muitas (e
variadas) razões é um livro necessário,
urgente e, sobretudo, social e politicamente útil; para as
amplas maiorias. Por que se trata do que é o mais profundamente revolucionário
e extensamente democrático processo histórico de quê se tem notícia após a
Segunda Guerra Mundial no Planeta.
O Brasil comparece – outra vez –
na prefaciação de Ricardo Antunes, que apresenta, a todo o público de fala
portuguesa, o seu ponto de vista ultramarino. Assim os nexos entre o nacional e
o internacional – forma e conteúdo da historiografia social e do trabalho de
Raquel – são marcas de anunciação já desde os elementos pré-textuais de sua
poderosa obra magna. A história
social (e política) contemporânea é o seu terreno. E quando se trata da
história de tempo recente, as várias tensões, conflitos e disputas são algo
mais intensos. As conexões entre passado e presente são já demasiado
autoevidentes como para serem, ora,
soslaiadas. As alternativas em aberto, as paixões partigianas e o que há de fissuras – e mal-estar – pretéritos, ganham corpo com maior nitidez no inquérito
historiográfico do passado imediato. As batalhas, travadas nas trincheiras da
escrita do histórico são, também, escaramuças, que se as combatem nas casamatas
do fazimento da história.
Varela redige seu trabalho como uma historiadora ciosa de seu ofício – que
conhece e ama – e uma ardorosa combatente sem quartel. Uma prosa arriscada e
vigorosa coteja fontes primárias, as mais múltiplas e mais diversificadas – dos
jornais à cinematografia, dos dísticos partidários aos documentos oficiais –,
com o estado da arte da atual literatura. A tenra colheita (e articulação) de
dados, o entretecimento épico / dialético das narrativas e a fina artesania da
reconstituição de fatos e aconteceres constituem, daí, um verdadeiro tour de
force. Mas nós acreditamos que uma leitura «mais de perto» possibilita, efetivamente, o desvelamento da
contribuição original (e a portentosa criação) que se permite antever desde o próprio título. Trata-se de
constructo com duplo caráter. A senha
para o motim vem da fertilização
recíproca do que é a «História do Povo» e sua herança, por um lado, e a
«Revolução Portuguesa» e seu legado, por outro. Aqui estão duas ricas vertentes:
1) A História do Povo perfaz uma
tradução intercultural, em sentido pleno, do que nós aqui no Brasil – em
uma primeira leitura – associamos, imediatamente, à tradição da People’s History referida, sobretudo, a
partir da história vista [e feita] de
baixo (“history from below”), notorizada
pelas penas de toda uma cepa de historiadores de processos sociais e críticos
de ideias ingleses, como Edward Palmer Thompson, Raymond Henry Williams e Eric
John Hobsbawm. O Grupo de Historiadores do Partido Comunista da Grã-Bretanha
escreveu páginas de história ao ousar se desmarcar da narração de grandes personagens e dos Estados-maiores, enfim, a história de cima. E é com um apaixonado interesse
que registro essa inspiração – focando humilhados e ofendidos, deserdados da
Terra, grupos subalternos e classes que vivem do próprio trabalho –, haja vista
os meus estudos e pesquisas que concernem, também, a essa tão notável tradição
intelectual. A sua mais viva inspiração contudo, convicta e confessadamente,
aponta à Outra margem do Atlântico Norte. Howard Zinn – o historiador anarquista
– e sua People’s History of the United
States. O autor, muitos menos conhecido no Brasil (do que são os seus pares
ingleses), tampouco deixa de apontar uma simpatia política pela
auto-organização independente de quem “trabalha para viver”.
2) A Revolução Portuguesa,
substantivo + adjetivo, indicia um marcador
nacional, é bem verdade mas, sobretudo, aponta para a presença ostensiva da
história (e da teoria) da revolução. Mais uma vez, Raquel não
esconde de onde vem e para aonde vai – da mesma forma que não
se omite de para quê + para quem aos quais todo cientista
social deve se haver. A pista, aqui, é a dedicatória de seu texto a Valerio
Arcary. Historiador trotskista, realizou seu batismo de fogo, na Quarta
Internacional, durante a mesmíssima Revolução dos Cravos. O reconhecimento do
quê é a grandeza dos «historiadores populares» não passa, aqui, pela
vista-grossa às limitações. À sua versão da história
do povo Varela elenca os aspectos da herança aos quais intende renunciar:
i) O empiricismo das fontes deveria dar lugar a uma mútua imbricação entre
conceito e evidência, ou melhor, o
vigor daquele metiê historiográfico anglossaxão deveria se aproximar mais da força da teoria social marxista revolucionária, impregnando-se daí de léxico
político a envolver noções tais quais dualidade
de poder, relação de forças em cena
e situação revolucionária; ii) A reificação contextual – de fronteiras
nacionais – ganharia em ceder lugar a um renovado “internacionalismo
metodológico”, o quê, no caso da revolução portuguesa, aponta para a
indissolúvel conexão com as lutas anticoloniais em África; iii) A própria
concepção do fazimento da história,
enquanto um ato de autodeterminação
coletiva, por fim, granjearia novos continentes ao ampliar-se em escopo e
espectro até incorporar, em cheio, a própria forma das revoluções sociais e
políticas “de baixo para cima”.
Trazer a história do povo até a revolução é – também – levar, a revolução, a
seu seio.
Em verdade, esse pacto com Clio – ao qual se filia Varela –, é tributário
de uma outra tradição intelectual, menos
incensada na academia portuguesa e brasileira. A historiografia adogmática
e antideterminista de Raquel considera que revoluções são impossíveis até se tornarem inevitáveis. Falando em
miúdos – e resumindo brutalmente – a história
do povo de Raquel Varela combina, com maestria, a via de mão dupla entre o que a historiografia zinn-thompsoniana
oferta e aquilo o que certo marxismo – trotskiano – proporciona. Não por outra
razão cremos que mais que uma mera resenha a propositura do presente diálogo vivo, a um só tempo conseqüente e fraternal, tem a audácia
de sugerir que, não só as teses da autora são originais, e sua arguição
consistente, do ponto de vista da historiografia social, sobre a revolução
portuguesa, como é-nos apresentado um aporte inovador, com seu quadro, desde a
perspectiva da teoria marxista-mundial
contemporânea. O feliz encontro de amor-camaradagem entre ambos os horizontes
sacode a poeira dos dois lados. Como se diz no mundo de fala inglesa é uma win-win situation, isto é, são todos a
sair ganhando.
Da História Global do Trabalho (“Global Labor History”) herdou um certo anti-“nacionalismo
metodológico” (circunscrito territorialmente este ao Estado-nação tal limite “natural”
da história, com visada eurocêntrica). Tal perspectiva teórico-metodológica
explica e compreende o combate em África – as lutas de libertação nacional
mediante “guerras de guerrilha”, ancoradas no apoio amplo de trabalhadores
rurais e camponeses das antigas colônias portuguesas, no continente – de forma
em tudo inextrincável às batalhas operárias e populares na citadina metrópole
lisboeta, da mesma forma como a Revolução de Abril influíra no vir-a-ser da queda
da ditadura espanhola. Marcel Marius Van der Linden (2009) – International
Institute for Social History, Amsterdã – e, antes dele, Perry Robert Anderson
(1980) – University of California, Los Angeles –, criticara E. P. Thompson de The Making of the English Working Class justamente
deste ponto de vista. Nas diversas polêmicas travadas entre Anderson e Thompson
– duas diferentes gerações de marxistas historiadores, desde a New Left inglesa – queda clara uma
questão-chave, algo obscura na fortuna literária de Arguments within English Marxism (o último lance dessa controvérsia
já estratégica): a teoria, a política e a historiografia de Leon Trotsky tal
resorte fundamental do World-Marxism.
Varela é uma historiadora sul-europeia, atenta à formação – histórico-social
– de uma vontade coletiva do povo-nação, que sabe que os proletariados de cada
país tem seu destino grupal selado pela sorte das lutas de classes para além
das fronteiras nacionais. Na pequena – porém
valorosa – recepção crítica brasileira, que já conta com recenseamentos de
Marcelo Badaró, Demian Melo e Rejane Hoeveler, talvez falte como lacuna essa
constatação de modo mais explícito. Os recursos penetrantes da análise e
caracterização político-social da intelectual pública lisboeta vem de um
diálogo crítico com a sociologia laboral, de Ricardo Antunes, e
pós-doutoramento e co-laboração com a história social, de Van der Linden, mas não só. Ela é/faz parte de uma
tradição minoritária – perseguida, ultrajada, isolada e/ou fracionada –, com
uma multiplicidade de canais e correntes subterrâneos, que raras vezes é
nomeada propriamente. A escriba toma partido do comunismo de militância trotskista
e engajado na veia de um Trotsky historiador de guerras, crises e revoluções.
Mas, dizem o sisudo positivista + escalafobético
pós-moderno, não há historiografia
militante! O Santo do compromisso
ético – e o valor cognoscitivo – não bateria,
nunca, com o militantismo? É justo o contrário. As exigências por
rigor humanamente objetivo só fazem, aqui, crescer. Qual canta o bardo carioca
(e o poeta lisboeta) «navegar é preciso»,
tanto mais em águas revoltas. Para navegar à
contracorrente é necessário albergar um estaleiro ancho e construir naus
consistentes, além de maestria ao timão e pulso-firme na praticagem. Laborar partiginamente à historiografia, desde
tendência marginal (porém irredutível), faz preciso armar maciçamente corpora de pesquisa e manter prumo
teórico que possibilite expor, interrogar e concatenar às fontes de modo legível.
A investigação historiográfica não é um exercício diletante por meio do quê o artesão
torce o real de acordo com intenções de ocasião, para fazê-la caber num Leito de Procusto de afirmações a priori. É a primeira que deve estar
acorde com o real – e não o oposto. E, Raquel, bem sabe disso.
A vaga de livre-arbítrio sobre a própria vida – que trabalhadoras e
trabalhadores, mulheres e jovens portugueses, construíram durante todo o
processo revolucionário, através de comissões de fábrica, assembleias de bairro
e um largo etecétera – é o fio condutor vermelho,
fulcral, do livro. A concepção ampliada da classe
que vive do próprio trabalho – o povo que vive para trabalhar, em luta por
trabalhar para viver – é eco e repercussão de Zinn e Thompson + Antunes e
Linden, e isso está já fora de disputa.
Mas, insistimos, adquire nova cor e
textura a partir das amarrações permitidas por bravo trabalho
historiográfico d’além-Mar – o que eu chamaria, aqui, de história global das ideias centrada, sobretudo, no «Marxismo-Mundo» –, do qual Raquel Varela
tomou já conhecimento há mais de dez anos: n’As Esquinas Perigosas da História (Arcary, 2004). O quê Valerio
Arcary estabeleceu como critérios intelectuais de periodização histórica –
muito homérica e alargadamente amparada pelos mais fundamentais debates
marxistas-revolucionários do séc.20 – é a sua vez apreendido de
ensinamento-aprendizagem de Hugo Bressano, alias
Nahuel Moreno.
Membro (e fundador) do assim-chamado “trotskismo ortodoxo” – na América
Latina –, com laços ao Norte das Américas – junto ao Socialist Workers Party estadunidense –, Moreno soía se
autodenominar um “trotskista bárbaro”, enfatizando sempre parcos estudos e uma
avassaladora experiência vivida, como batalha à morte, por levar um vocabulário
marxista para o trabalhador argentino. Pois
bem. Esse comunismo selvagem – e modestamente letrado – livrou embates sem conta para municiar-se da
teoria marxista durante décadas a fio, junto ao desafio de proletarizar a
corrente boêmia que herdou de seus ascendentes e internacionalizar uma
tendência que cada vez mais cedia ao provincianismo nacional. Dito isso, vamos ao grão. São os mesmos trabalhos
de investigação, da pena de Nahuel Moreno – além
de uma convivência de companheirismo –, que irão influir no futuro
historiador e no agrupamento ao qual ligou seu destino àquele 25 de Abril. Para expor uma só prova concreta: a
distinção feita entre Fevereiros e Outubros – as revoluções políticas e as
revoluções sociais (Karl Marx) – vem justamente desse velho trotskista
bonearense.
A época histórica e a situação política são também critérios morenianos,
que vão das longas durações – até os tempos curtos – e, uma distinção
temporal, dessa calibragem, é fundamental.
Registrar descompasso de tempo, entre base e superestrutura, Estado e sociedade
civil, nacional e internacional e – por
que não? – a teoria e a prática, é o que adjudica a delicada sensibilidade para a escuta (e a escrita!) do que é histórico. Tão-só na confluência
mesma das mais múltiplas temporalidades a história (e a teoria) da revolução se
faz, daí, possível. Isto é, principalmente, “o resultado de uma violenta
irrupção das massas nos domínios onde se pautam os seus próprios destinos.” (Trotsky,
2007). Mas seu escopo não se circunscreve
a uma narrativa do acontecido. Para além da narratividade põe-se o repto de
iluminar às tendências do fazimento
histórico em si, ou seja, confronta-se à polêmica historiográfica sobre o sentido – e a forma – da própria revolução. E a revolução portuguesa foi a
simultaneidade histórica de três
processos revolucionários diversos.
À revolução antiimperialista, nas colônias, aliou-se a revolução
antiditatorial, na metrópole e, desse
nexo nacional-internacional, fez-se, então, uma revolução política e social
anticapitalista. As insurreições anticoloniais, na África lusófona, foram o
detonador do processo revolucionário. Se o “Movimento das Forças Armadas”,
grupo político-militar da oficialidade intermediária, não suportou um então
colossal sacrifício beligerante lusíada, as coetâneas e coextensivas revoluções anticoloniais em África
estabeleceram o exemplo para a luta em Portugal, criando bases de apoio a
ultramar, já desde as deserções militares até as reivindicações por
independência. A exemplo do que aconteceu com a vaga revolucionária europeia
dos “anos das barricadas”, de 1967 a 1975 – em Paris, Berlim, Londres –, a radicalização política foi a hora e vez
para que se apresentasse a “esquerda da esquerda”, i.e., o marxismo
revolucionário, insubmissa ao programa e às ideias do stalinismo e da
socialdemocracia. Do que se depreende que o processo histórico não se reduz, aí,
nem aos Capitães de Abril e seu putsch
ou ao Partido Comunista Português e sua via
nacional ao socialismo. A história do
povo – “de baixo” – na
revolução portuguesa ausculta o pulsar do novo.
A perspectiva conhecida como a história
social e do trabalho, inspirada esta no horizonte da historiografia de baixo deve, e muito, a um determinado marxismo de fala inglesa.
Esse tipo de história, mais freqüente nos anos 70, foi cada vez mais sendo
substituído por histórias políticas e institucionais. O trunfo do trabalho de
Raquel, inclusive, foi o que lhe proporcionou daí uma das conquistas
intelectivas mais importantes desta opera,
qual seja, a nova cronologia from below do Portugal revolucionário. As datações arbitrárias de atos de
governo e diretivas de Estado foram, ora, postas sob nova luz histórica, vis-à-vis às iniciativas dos movimentos e às
reivindicações de classe. Pois bem. O
escrutínio desse metiê anglo, numa leitura atentiva
e de perto, produziu uma auspiciosa
polêmica, que tem lugar em uma série de atos de fala – interpostos na esfera
pública –, entre dois grandes representantes da tão rica e múltipla vertente do
marxismo anglossaxão. Tudo teve início com As
Peculiaridades dos Ingleses e findou com Arguments within English Marxism. Mesmo que historicistas absolutos – no sentido reivindicado por Antonio
Gramsci – objetem-nos qualquer consideração sobre a teoria de modo
relativamente autônomo à práxis como escolástica
ou o leitor atento se pergunte o porquê de incursão no hardcore de uma polêmica passada (mas não ultra-passada), as afinidades
eletivas com o trabalho de Varela sabem a demasiado marcantes.
Não vamos passar em revista o conjunto da polêmica realizada entre as
diferentes gerações da New Left
anglossaxã. Tratar-se-ia não só de um labor exaustivo, como suplantaria os
motivos do presente ensaio, e o espaço que lhe cabe. Remetemos qualquer
interessado em um cotejo entre os marxismos de Edward P. Thompson e Perry R.
Anderson aos próprios textos dos autores como, também, à nossa tese de doutoramento
– Otimismo
da Vontade, Pessimismo da Razão (2014). Contentar-nos-emos em
indiciar que o que se colocava nesta disputa era desde um processo de formação (fazimento) da classe operária (trabalhadora) inglesa até, ao
fim e ao cabo, o próprio conceito de agência
humana (em inglês distinto a sujeito
social) e, conseqüentemente, revolução.
Uma exposição digna das teses Nair-Anderson, e da controvéria de Thompson, pode
ser buscada em capítulo de livro coletivo no
prelo (Del Roio et.al., 2015) que
titulamos Traduttore, Traditore.
Ora, salvo ledo engano, o ponto de
chegada da querela travada pelos titãs da historiografia marxista é justamente
aquilo que mais interessa ao ponto de partida da obra de Raquel Cardeira
Varela. A história da revolução tampouco
deixa de ser uma revolução na história. A narrativa envolvente (e
todo-açambarcante) da pena de Raquel almeja não só transportar os leitores ao
que são os acontecimentos sociais, políticos, culturais e econômicos desses 12
meses que abalaram à Península Ibérica. A vívida prosa de Varela é, a um só
tempo, mais concisa e ambiciosa que isso. Afinal a história de uma revolução
deveria, após relatar o quê + como ocorreu – quando + onde –, ocupar-se,
cristalinamente, do “por quê as coisas ocorreram desse modo e não de outro.”
Isto é: “Os eventos não poderiam ser considerados como um encadeamento de
aventuras nem inseridos, um após os outros, sobre um fio qualquer de uma moral
preconcebida...” (Trotsky, 2007, op. cit).
E aqui o que se faz necessário é – mais
do que uma história da teoria – uma
teoria da história. Acreditamos, firmemente, que a luz e o calor gerados
pelo atrito de fricção na polêmica político-historiográfica-teórica travada
entre Edward Thompson e Perry Anderson pôde aquecer/iluminar o debate de algo,
puramente fundamental, resgatado por Varela: o espectro da autodeterminação.
A «Revolução dos Cravos» foi a
última das revoluções político-sociais da Europa Ocidental. Foi original em vários sentidos. Mas no
aspecto mais classicamente característico das revoluções foi, simplesmente,
gigantesca. Não à-tôa uma conquista conceitual foi necessária no sentido da
descrição e análise do que a autora chamou controle
operário da produção (e reprodução)
social. Uma análise comparativa e internacional esboça, aí, um diagrama
rudimentar neste terreno ao se debruçar sobre o cotejo de revoluções similares,
no Império Austro-Húngaro, Alemanha e Itália. Entre o abril de 1974 e o fevereiro
de 1975, algo abalou Portugal desde fábricas, escolas, locais de moradia e
lugares de trabalho. Generalizou-se um novo modo de vida (e luta) em tudo distinto. A «dualidade de poder» foi aí uma grande recusa, organizada e consciente, ao
direito sagrado à propriedade. Fez nascer de cada chão de fábrica, estaleiro,
escola, repartição, casa e bairro uma nova
hegemonia trabalhadora pela profana necessidade à vida. A escuta atentiva ao
pulsar do controle operário – já em
profundidade ou extensão – possibilitou uma
nova escrita histórica da revolução portuguesa. O 11 de Março muda de
significado, tal momento movido e movente, e as nacionalizações são, antes que
reflexo da fortaleza do Estado, refratação de seu definhamento. Trata-se dum
tipo específico de fazimento da história,
que a sua vez roga por nova
historiografia.
A essa altura, mesmo o leitor mais atento e cuidadoso poderá se perguntar o
porquê de tantas perturbações aparentemente secundárias imiscuídas à questão,
essencialmente, prioritária. Não se trataria, tão-só, de apresentar texto
recém-lançado ao público brasileiro, ambientá-lo de maneira eficaz (com a
efetiva contextualização da revolução portuguesa) e, daí, versar sobre as
inovações temáticas e/ou as conquistas formais – tal qual suas eventuais zonas
cegas e/ou limites – dessa novíssima narrativa historiográfica? Arrancamos do
pressuposto de que a tarefa supracitada foi realizada a contento pelo grupo
nucleado no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense –
talvez o mais avançado programa coletivo de pesquisas marxista em história
social e do trabalho no país – e ao mesmo tempo admitimos de antemão que o
esforço hercúleo de mais de 500 páginas legou – à comunidade internacional, de
língua portuguesa – a mais portentosa e vibrante história social europeia de
que se tem notícia após os escritos de L.Trotsky. (E fazemos votos de que seja
traduzida o mais amplamente para idiomas os mais diversos.) O que podemos fazer
senão pedir já muito honesta – e sinceramente – ao caro leitor um pouco mais de paciência?
O trabalho de Raquel apresenta uma
rara oportunidade. Faz-nos sentir. Faz-nos pensar. Uma das coisas que nos
faz sentipensar sobre é, justo, a
história dos “grupos sociais subalternos”,
a história “à margem da história”. A
inspiração autoevidente dessas rubricas remete ao afamado Caderno 25, de
Antonio Gramsci. Sabemos amplamente que, esse caderno produzido pelo sardo
revolucionário no cárcere fascista, inspirou genuína “volta ao mundo” com os post-colonialism, os cultural studies e os subaltern studies. Menos conhecido,
porém, é o périplo por detrás de Eric John Hobsbawm e seu Rebeldes... Consta que, na feitura da pesquisa do livro, foi
indicado ao historiador egípcio-inglês que conhecesse os parágrafos do
comunista meridional dedicados ao fenômeno do lazzarettismo itálico [2]. As trilhas e considerações, sugeridas
por Gramsci, valem ouro para todo e qualquer historiador de processos sociais e
crítico de ideias sintonizado com a perspectiva de encontrar a identidade real sob a aparente alteridade e a substancial
diversidade sob a unidade aparente. Tem a ver com a centralidade axiológica do saber-fazer dos
subalternos.
O lazzarettismo itálico foi
muitas vezes lido como manifestação histórica dum atraso cultural. Um espasmo
irracional e selvagem, um messianismo milenarista de tipo retrógrado –
sobrevida estranha ou fenômeno primitivo –, algo tal qual delírio coletivo. Mas o que quer
dizer ‘delirar’? O quê se ensina
às pessoas, mulheres e homens do povo, indivíduos que fazem e são feitos pela
base mesma de cultura e sociedade? Trabalhar e obedecer: não-delirar. Desde a origem latina o verbo delirar dá conta de uma negação
parcial ao mundo do trabalho. Ele indica o que acontece com o arado da terra ao
sair dos sulcos marcados pela charrua. Do Lat., Delirium, é um estado
de confusão mental descrito a partir de Hipócrates (460-366 a.C.) qual um dos
primeiros transtornos neurológicos já registrados. O termo Delirium deriva de Delirare,
que significa algo como estar fora de lugar mas ganhou uso, atualmente, com sentido
de estar confuso, distorcer a realidade e foranear-se de si. O direito ao delírio
é parte inextrincável com algo de atenção ao texto e estória das palavras (no
contexto e história das lutas de classes) àquilo que Friedrich Engels
considerou como único direito histórico universal inalienável, a saber, o direito à insubordinação. Manobra de
puxar o freio de emergência à charrua
e se descarrilhar dos sulcos da dominação. Sair fora de si, encontrar-se com o
Outro, e reconciliar-se à humanidade. A rebeldia
social é o delírio coletivo.
Se vistos “desde cima”, os elementos de
baixo parecem guardar sempre algo de bárbaro e/ou patológico é dever de
classe, de um historiador a contrapêlo dos vencedores, ler pelo avesso suas
marcas de enunciação e estar atento a qualquer chispa de tendência subversiva,
a mais elementar. Os critérios teórico-metodológicos para uma historiografia de
grupos sociais subalternos impõe o conhecimento de seu caráter desagregado e
episódico. A inegável tendência à unificação, ainda e quando provisória, é
continuadamente rompida pela iniciativa dos dominantes. Não é por outra razão
que todo e qualquer sinal de iniciativa independente deve conformar valor
inestimável para aquilo o que Gramsci chamaria de historiador integral. Ainda e quando Thompson escreva seu magnifico
The Making of the English Working Class
sem maior conhecimento da recomendação gramsciana, não é outra a paixão que
transparece logo de seu prefácio. A explosão de letras com que se põe à
tentativa de redimir às revoltas camponesas, à rebeldia trabalhadora ou à
economia moral da multidão é mais do que notória. O passo seguinte, nada
obstante, formaria progressivo inquérito de sua composição heteróclita até a conquista da autonomia,
isto é, o poder de Estado. A investigação monográfica de revoluções não serve
um outro propósito senão, justamente, esse.
A polêmica de Thompson e Anderson é conhecida no Brasil, assim como em
muitos outros lugares, desde o ponto de vista do primeiro em detrimento do
segundo. Não é aqui o espaço para esclarecermos o porquê da obviação dos
argumentos de Anderson a respeito. São muitos e muito variados. Um forte sintoma
da prevalecência de uma historiografia social popular à la Thompson são os seus vários discípulos no campo da história e,
por exemplo, a não-publicação desse
livro fundamental em língua portuguesa. Mais do que assumir a perspectiva de um
contra o outro o que nos propusemos fazer em nosso trabalho é esclarecer seu
caráter mutuamente complementar. As zonas de penumbra de um constituem o foco
luminoso de outro e viceversa. Mas como já nos adiantamos, não é nosso objetivo
reconstruir a história político-editorial desse quiprocó público. Nos interessa
chegar já diretamente ao ponto em que a controvérsia finalmente assume um tom
mais fraternal e conseqüente e, coetaneamente, deixa de lado a imponente
crítica thompsoniana a Louis Althusser para colocar no centro do fogo às
concepções totais de mundo que ali se debatem. Sem qualquer embaraço e pelas
razões já expostas vamos passar ao que diz Anderson nessa obra.
De 1964-1978 o debate
Thompson-Anderson galvanizou uma série de questões em teoria, política e
história [3]. O lançamento d’A Miséria da
Teoria (1978) forneceu o que seria uma chance para enfrentar os problemas nodais
para a historiografia marxista mais importante produzida durante a segunda
metade do século vinte. Teórica e filosoficamente, um Argumento é uma tentativa de persuadir alguém (de alguma coisa),
dando razões para aceitar uma conclusão particular tal qual demonstrável
autoevidente. A forma geral de um Argumento
em linguagem clássica é a de premissas (mais normalmente na forma de
proposições) como suporte de uma vindicação. Ademais, em língua inglesa, to argue with; arguir com alguém (a
respeito de algo), tem uma conotação polêmica bastante aguda; de natureza e limites
bastante claros a respeito do teor de contraponto crítico. Within = dentro de. O enunciado formal, de difícil tradução seria,
por aproximação, algo de árida adaptação para um ambiente literário onde
socialistas e comunistas, bem como a esquerda e o marxismo brasileiros, tem
grandes dificuldades em estabelecer uma cultura política e teórica comum
baseada na argumentação racional de critério polêmico, já seja via a oferta de
premissa destinada a uma garantia de verdade para uma conclusão, argumento dedutivo,
ou o fornecimento de razão que fundamente sua
provável verdade, argumento indutivo.
O trânsito da
racionalidade crítica para a polêmica política passando da teoria à história e
da história à teoria, para todos os efeitos, são aqui um tema peculiarmente inglês. Os Argumentos no interior do Marxismo Inglês
para a polêmica que se estabeleceu no seio da New Left mais antiga do mundo, é o tópico que nos ocupa aqui e
agora. Uma das predições concretadas da pena andersoniana é então inaugurada. O
jovem editor fizera prognóstico do encontro da historiografia insular com a
filosofia continental. O Canal da Mancha, contudo, fez com que se estrelassem
um contra o Outro o histórico Thompson e um teórico Althusser. A primeira
grande confrontação em grande escala de um historiador inglês com um grande
sistema filosófico continental no terreno do marxismo; este seria o significado
a ser celebrado da empreitada deste ensaio histórico-político-teórico. O
desenvolvimento do «Marxismo-Mundial»
muito se beneficiaria do direto embate de tão distintas tradições,
representadas por Thompson e Althusser e, desse modo, dar-se-ia então uma
largada ao processo de tornar a história conscientemente teórica e a teoria
historicamente informada. O singelo recado – de Anderson – era nada mais e nada
menos uma emulação da laboração historiográfica de Thompson aliada ao “trabalho
teórico” de Althusser, atentando para a crítica do empirismo e do
ultrateoricismo, se é que é possível equiparar ainda que alusivamente corporas de pensamentos tão antípodas
quanto podem ser o de um e o de outro.
Algo contraintuitivamente
– para se dizer o mais mínimo –,
Anderson arbitra a polêmica de Thompson contra Althusser afirmando que, ainda e
quando seja Thompson o mais brilhante de todos os historiadores da mais
talentosa e erudita cepa de mestres do ofício e Althusser o menos historicista
dos filósofos do marxismo ocidental foi o último a formular a natureza da
história em termos mais claros. Se Thompson equalizou história a passado per se Althusser mais nitidamente
argumentou que fatos históricos seriam aqueles a causar mudança em
relações sociais estruturais.
Debater-se-ão, daí, os tópicos: i)
Historiografia, ii) Agência, iii) Marxismo, iv) Stalinismo, v) Internacionalismo,
vi) Utopia e vii) Estratégia. Anderson considera que o conjunto do ensaio é
dominando por quatro aspectos centrais, a saber, o caráter da Historiografia, o
papel da Agência humana na História, a natureza – e o destino – do Marxismo e,
enfim, o fenômeno do Stalinismo. Não vamos nos deter na crítica a respeito do
conceito de codeterminação e consciência de classe ou formação histórica da classe trabalhadora
e contradição entre forças / relações de
produção. O que retemos aqui de relevante (e produtivo) é a centralidade
teórico-metodológica atribuída a uma revalorização do famoso Prefácio – 1857 – à Contribuição da Crítica da Economia Política.
O contexto efetivo da
controvérsia seria o limiar não-cicatrizado entre efervescência dos anos das
barricadas e prenúncio de uma
década perdida para a reação política
histórico-mundial. A justeza da crítica thompsoniana ao antiempirismo
althusseriano não deixaria de sublinhar a necessidade da teoria na história,
isto é, a construção e sistematização do conceito que permita ao historiador
ascender – do abstrato ao concreto –, através do quê Karl Marx e Friedrich
Engels chamam síntese de múltiplas
determinações. Controvérsia clássica das ciências sociais é então
enfrentada; a dicotomia entre o determinismo estrutural e a agência subjetiva.
Considerando-se a ambiguidade dos termos e conceitos de Agência e Sujeito (uma
distinção importante em idioma inglês) rechaça-se o que se considera os
unilateralismos de Thompson, criatividade
humana, e Althusser, implacabilidade
estrutural. Em seu lugar se propõe, então, algo de uma nova posição
compatibilista, tratando de reconciliar o irreconciliável nos termos em que se
dão: a ação volitiva, trazida por Thompson, e a causalidade universal de
Althusser. A noção de Agency entra em
cena.
Apesar d’Agência ser a chave-organizadora do
conjunto da obra de Thompson restaria em seu núcleo nevrálgico algo de uma indistinção entre três diferentes tipos.
Esses três tipos incluiriam agentes atuando sob meios para realizar fins
privados, individuais – como, por exemplo, o casamento –, ou mesmo finalidades
públicas, interpessoais, não-voltadas ao remodelamento de relações sociais
estruturais pré-existentes, tal como conflitos armados e/ou diplomacia de
Estado. Para além dessas esferas da vida – e
também para além de todo tipo de fazimento da história já conhecido – Anderson
mais se preocupava com aquilo que chamou projetos
coletivos de auto-determinação popular [e/ou de massas]. Em um contraste
agudo com a elisão promovida pelo pensamento de E.P.Thompson – para sermos
justos, elisão essa mais patente nos
escritos “mais teóricos” –, Anderson argumentara que a concepção de uma agência
humana de transformação global poderia ser retida em premissas as mais
historiograficamente rigorosas como atividade
consciente guiada por fins. Para o autor, tais projetos coletivos – que intentaram fazer de seus pioneiros os
autores de seu próprio modo de produção da existência social, com um programa
autoconsciente e de forma auto-organizada, encaminhando-se para criar ou
remodelar estrutura e agência a um só tempo e em sua totalidade – formam tipo
de agência historicamente novidadeira.
Tratar-se-ia de obra
coletiva do moderno movimento social operário nascente, como que a criar
realmente essa nova concepção e prática de transformação histórica global. Com
o advento do socialismo científico, os projetos coletivos de mudança social e
política se irmanaram, pela primeira vez na história da humanidade, com
esforços sistemáticos e ordenados por interpretar os processos de passado e
presente e, assim sendo, produzir demiurgicamente um futuro pré-ideado. A Revolução dos Soviets – dirigida por
bolcheviques-leninistas – teria sido o ensaio geral dessa nova forma histórica
de pensar e agir sobre a interpertação e transformação do mundo, isto é, uma
encarnação real e inaugural de um novo tipo de fazimento da história, baseado em um modo de agir sem precedentes conhecidos. Como bem se
sabe, os resultados “realmente existentes” deste grande ciclo de revoltas
histórico-sociais estiveram bem longe do que se sonhou. ‘Mas, em qualquer caso’
– disse P.R.Anderson – ‘a alteração do potencial da agência humana operada no
curso do Séc. XX é irreversível.’ (p.20-21) O que nominou como espectro da autodeterminação.
Esse novo tipo de agência humana, inaugurada
pelas três revoluções russas do século vinte, teve «premonições antecipatórias»
nas formas históricas da colonização
política, heterodoxia religiosa e
utopia literária dos séculos
passados. Mais especificamente as revoluções francesa e americana foram as
pré-figurações históricas da agência
humana, neste sentido mais decisivo. A especificidade histórica do processo
revolucionário russo repousa na direção coletiva imbuída de um conhecimento
científico do mundo social e político que permitiu a predição do processo de
modo a alterar relações de forças e à própria agência no decurso do movimento
mesmo do real, enquanto as revoluções francesa e americana detonaram-se
amplamente como explosões, o mais espontaneamente. (Trotsky e Lenin, à
diferença de Robespierre e Washington, colocaram-se os fins de mudança político-social
de modo autoconsciente e auto-organizado). Uma nova forma de agência humana –
como afirmava Marx – se faz necessária para a revolução proletária socialista.
A autoemancipação dos trabalhadores voltada não para a substituição política de
formas sociais de dominação mas – justamente – para a abolição das relações de
poder é a nova forma histórica.
Se Althusser foi autor
da odiosa noção de “processo sem sujeito”
Thompson insistiu na ideia, igualmente apodictica e algo especulativa, de “sempre ressurgentes agentes”. Uma
aproximação histórica (mais do que axiomática) buscaria traçar a curva de
empreendimentos de novo tipo, que se mostra agudamente ascendente – em termos
de largura de escopo e participação de massas –, nos últimos
dois séculos, em franco transcrescimento dos níveis de primeiridade e
secundidade. (A demografia e a linguagem seguem áreas da existência
inexploradas por esse tipo de agência.) O lugar da autodeterminação – para usar um termo mais preciso do que ‘agência’ – expandiu-se notoriamente nos
últimos duzentos anos. O inteiro propósito do materialismo histórico tem sido
precisamente o de fornecer a mulheres e homens os meios efetivos através dos
quais possam eles exercer uma autêntica autodeterminação
popular por primeira vez na história e decidir o destino de suas vidas. Não
é outro o objetivo da revolução proletária socialista – isto é, na linguagem
clássica de Karl Heinrich Marx –, a transição do reino da necessidade para o reino da liberdade.
«Nunca tanta gente decidiu tanto» disse Varela quando do lançamento
editorial no prestigiado Festival Literário de Madeira 2014, ao comentar o
trabalho de quase uma década nos arquivos de Grã-Bretanha, Holanda, Estado
espanhol e Portugal para dar voz aos que não tiveram voz e vez. “Essa História
do Povo [HdP] não é sobre o Povo todo, nem referente à ideia de Nação, é focada
nas comissões de trabalhadores, nas associações de moradores, nos comandos de
greve, nos atos e manifestações, nas pessoas que se auto-organizaram para
definir a estrutura social a partir de seus bairros, do movimento estudantil, da
história social de mulheres que passaram por processos emancipatórios
fortíssimos – em 1974/1975 –, por questões tão básicas quanto direito a licença-maternidade,
direito ao divórcio, [direito a] que os filhos não fossem considerados
ilegítimos. A HdP é a história das pessoas em descoberta de que podem tomar a
vida em sua própria mão, que o poder pode ser exercido diretamente por elas,
coletivamente, sem que lhes seja outorgado.” Ou seja, as ocupações e os
conselhos, autogestão + controle operário da produção da
existência, a hora-lugar do salto de consciência e organização, que aponta uma
alternativa ao poder de Estado.
Se Thompson se mostrou
às voltas com uma concepção advinda do marxistencialismo
de Jean-Paul Sartre e Anderson enredou-se à moda teórica do marxismo analítico de Gerald Cohen,
implicados em suas antinomias histórico-políticas, a história social e do trabalho de Varela não cometeu o mesmo deslize.
Na verdade, a fonte de inspiração teórico-metodológica mais direta da autora
passa ao largo das contradições, limites e tensões apresentados pelo debate
Thompson-Anderson ao mesmo tempo que retém a seus momentos luminares. Acontece
que Raquel declara sua simpatia histórico-político-teórica a outra dobradinha anglo: Howard Zinn e
Chris Harman. Se Zinn foi historiador anarquista responsável pela História do
Povo, Leslie Chris Harman perfaz diante de Raquel Varela um modelo teórico de
trabalho intelectual em tudo atraído pela noção radicalmente marxiana: da
emancipação dos trabalhadores como obra dos próprios trabalhadores. Nem Howard
Zinn é Edward Thompson e nem Chris Harman – autor de A People’s History of the World (1999/2009, Verso Books, London
& NewYork) – é Perry Anderson. “Muita gente me pergunta se existe um livro
que faz pela história mundial o que meu livro fez pela história dos Estados
Unidos. Eu sempre respondo dizendo-lhes que conheço apenas uma obra que realiza
esta extremamente complexa tarefa, e que esta é Uma História do Povo do Mundo de Chris Harman.”
A presente operação de
detóur – por dizer de algum modo – de
«deslocamento/condensação», do duo
Thompson-Anderson (ao ‘lugar-hora’ de Zinn-Harman), serviu-nos ao propósito a
um só tempo de chegar ao conceito do espectro
da autodeterminação, Anderson, e sugerir
às noções de experiência vivida e percebida,
cultivadas por Thompson. Pois se é bem verdade que não se sabe a fundo sobre o
debate Thompson-Anderson no Brasil, a respeito de H. Zinn e C. Harman paira uma
zona de penumbra de abosluto
desconhecimento. O que importa afirmar é que um terço da população de
Portugal – cerca de 3 milhões de pessoas – se engajou diretamente no centro
vivo de processos decisórios a respeito de suas próprias vidas. As pessoas não
votavam de quatro em quatro anos para
daí decidir o que se fazer: elas decidiam, a diário, reunindo-se em fábricas,
nas escolas, nos hospitais, no campo, nos bairros. Decisões que não eram
impostas. Havia horas de reunião – de negociação e de discussão – votações,
braços ao ar e olho-no-olho, para se chegar, coletivamente, à conclusão do que
era melhor. Onde construir uma creche? Como organizar os correios? De que modo
impartir à educação? Muitas vezes pensa-se à democracia liberal contra a
ditadura como se não houvesse nada a mais mas, em 1974/1975, houve uma democracia de base.
A questão urgente –
vital – é aquela vinda da política de
baixo. Trata-se de resolver o enigma das revoluções proletárias socialistas
e de suas repetidas tragédias históricas: como, de nonada, tornar-se, já, tudo?
Como uma classe, física e mentalmente mutilada pelo cotidiano da servidão
assalariada, poderá, aí, se
metamorfosear em um sujeito universal da autoemancipação humana? Raquel reconta,
com um indisfarçável júbilo, sobre como as pessoas mais pobres, e em farrapos
humanos – “sem dentes” e/ou “de olhos fundos” –, depois de já 48 anos de
ditadura salazarista, irrompiam com discurso e prática de transformação social
global. Em um país assolado por 30% de analfabetismo, com muitos vivendo no que
no Brasil se conhece por «favelas», com muitos milhares de mulheres fora do
mercado de trabalho e do acesso à educação escolar, como terá sido possível?
Não poderia ser outra, a tarefa de Sísifo, a que se lançou essa bravíssima e
paciente historiadora trotskista: reunir – construtiva e diligentemente – um
tal volume de dados sobre número de greves, empresas autogestionadas, comissões
de trabalhadores, de “saneamentos” (afastamento de ex-colaboradores da
ditadura), de associações de moradores, movimentos da renda e o salário médio.
O registro alcançado pela extensão do controle operário nas fábricas, o nível
de coordernação de comissões de trabalhadores e a participação direta nos
eventos de Abril de 1974 são uma eloqüente resposta. A autoatividade das massas
enquanto práxis revolucionária.
Ainda há muitos temas
e questões por tocar. Raquel demole a falácia da noção de “transição” e de
processo “cordial”. Coloca MFA e PCP em seu devido lugar. Reabilita vozes e
revaloriza eventos. Um tratamento o mais adequado da documentação fotográfica –
à la Revoluções (“A Revolução
Fotografada”), de Michael Löwy (São Paulo : Boitempo, 2009) –, que transborda
de images à la sauvette ou daquilo
que mal-traduziu-se tal qual «instantes
decisivos» da revolução, é devido. Uma especial atenção para a relação
entre arte e revolução no capítulo específico traria uma série de novas
problemáticas internacional-comparativas com estruturas e processos mundo-afora
(e no Brasil, em particular, com preocupações semelhantes à de Marcelo Ridenti
& outros). E uma abordagem mais conseqüente dos prolegômenos aqui esboçados,
para o recurso heurístico de trazer à lume o
debate Thompson-Anderson (suas concepções de classe, agência e revolução),
não se pararia por aqui. Tudo isso para dizer que poderíamos desdobrar ad infinitum (sob o risco de fazê-lo ad nauseam) às riquezas de relações e
multideterminações trazidas pela leitura do livro. Nesse momento precisamos
daquilo que os italianos chamam de Fermata,
uma espécie de freio de mão de emergência literário, para que leitor, escriba e
autora possam restar um cadinho em paz.
Mas já não sem antes
inculcar algo de “uma pulga detrás da orelha” de quem lê a essas linhas. O
insight dialético-intuitivo que dá conclusão provisória a esse escrito de
intervenção é de que se avizinha a tal «velha toupeira», tantas vezes emulada
por um tal Karl H. Marx. Chegam-nos ressonâncias e reverberações – sinais dos tempos – de que, mais uma vez,
se fará uma revolução social e política europeia. Do que se dizia, no jargão
dos mais velhos, as “condições objetivas” e “subjetivas”, há um avolumar-se de
contradições baseadas em antagonismos os mais diversos e irreconciliáveis de-há
algum tempo já. Os ecos e repercussões da crise econômica mundial e a forma
como se dá o ensaio geral – ou prólogos – de lutas e resistências,
sobretudo na porção Sul do velho continente, diz (ou murmura) algo a esse
respeito. A Europa inicia a se espreguiçar.
Um corpo político e social, algo embriagado de um sono profundo, das casamatas
e fortalezas da Europa do Capital, deve ainda alongar membros (e testar
movimentos) antes de se colocar de pé. Mas os bocejos (no lugar de gritos de
guerra) já se fazem ouvir à longa distância de um Oceano. A geração à rasca, precários inflexíveis e
a Avenida Liberdade não são mais do que
um começo...
A ultimíssima
remarcação se faz à revelia da
escritora da obra ora em escrutínio a tudo atento. É que muitas e muitas vezes
ela mesma se desmarcou, em diversas ocasiões e entrevistas, de se assumir como,
além de historiadora de ofício, uma praticante da arte da escrita. Não nos
sobra mais remédio do que afirmar o mesmo juízo literário que Perry Anderson
dedicou àquele que considera, nada mais e nada menos, o que seria o melhor escritor socialista da Inglaterra
— “e, possivelmente, da Europa.” Anderson assevera, sobre a escrita de Edward
Palmer Thompson, “estupenda variedade de timbre e ritmo”, diz o autor, “é o quê
predomina em seu melhor – “apaixonada e alegre, cáustica e delicada,
conscienciosa e coloquial” – e, para todos efeitos, não teria paralelo no seio das esquerdas. O juízo literário é,
enfim, o mais alto. Mas não se para por
aí. Não obstante, diz, as conquistas estrictamente “historiográficas”, de
uma série de alentados estudos sobre os Sécs. XVIII e XIX – que abarca desde
William Morris até o brilhante conjunto de ensaios de Costumes in Commom –, constituiriam algo como o produto mais
original da mais avançada historiografia marxista-mundial, à qual teriam
contribuído já tantos eruditos de talento. O registro da prosa de Varela tem
tudo isso – alegre/apaixonada/cáustica/delicada; irredutível – e mais. Fustiga o tempo-de-agora do mundo dos
trabalhadores, suas riquezas e misérias, com o debruçar de um par de olhos que
sabem tudo aquilo que é capaz quando «o
medo muda de lado». E potencializa a calibragem do poder de comunicação e
expressão a partir destes conhecimentos.
O fim da leitura da
obra de Varela faz saltar da letra do texto outro quadrante quente da canção
popular brasileira: —Vamos fazer um filme? Cada um dos
leitores não poderá evitar o movimento involuntário de editar uma película – na
mente e no coração –, onde não haverá lugar para o herói masculino individual,
típico da dramaturgia burguesa mais convencional. Um filme, com a força da
narração de um Ken Loach, atento à vida vivida da classe trabalhadora em tela.
Esse filme haverá de construir muitas pontes: entre continentes, entre épocas e
entre gerações. Um filme que, não sendo nada parecido a uma love-story – tal qual a indústria dos
cinemas nos habituou a considerar –, haverá de dizer sem papas na língua sobre
o mais autêntico amor humano. Não por outra razão já causa expectativa o ensaio
histórico-político que concebeu às vésperas da viagem
Portugal-Brasil-Inglaterra, atualmente no prelo, Para onde vai Portugal? (Lisboa, 2015). A autoevidente inspiração
trotskiana é, mais que intenção, um
gesto. Pois mais que estratega do Programa de Transição e teórico da Revolução
Permanente, Leon Davidovich Bronstein Trotsky, é cronista do modo de vida, ensaísta
de literatura e revolução e, creiam ou não, criador de trechos que simplesmente
não podem não ser comparados com aquilo que nós usamos chamar de poesia:
É fevereiro de 1917: tem começo a maior revolução de
todos os tempos. Em uma semana a sociedade se desfaz de todos os seus
dirigentes: monarca e homens da lei, policiais e sacerdotes, proprietários e
gerentes, oficiais e amos. (...) Surge então – das profundezas da Rússia – um
imenso grito de esperança. Nessa voz se mescla a voz de todos os desesperados, humilhados
e desamparados. Em Moscou, os operários obrigam a seus donos a aprender as
bases do novo direito operário. Em Odessa, os estudantes ditam a seu professor
um novo programa de história das civilizações. No exército, os soldados deixam
de obedecer a seus superiores. Ninguém jamais havia sonhado com uma revolução
assim. Agora esse sonho circula pelas veias de todas as almas – desesperadas e
desamparadas – deste Planeta. A grande fraqueza de muitos ‘revolucionários’
consiste em sua mais absoluta incapacidade de se entusiasmar, de se elevar,
acima do nível rotineiro das trivialidades, de fazer surgir um vínculo vital
entre ele e os que o rodeiam. Aquele que não pode incendiar; não pode incendiar
sua vida, nem a dos demais*
(LT).
_________________________
*Leon D. B. Trotsky, In: O Grande Sonho, s/d., v/e.
Notas
[1] Varela, Raquel. História
do Povo na Revolução Portuguesa (1974-1975). Lisboa: Bertrand, 2014, 536p.
[2] Davide
Lazzaretti (1834-1878) foi um líder rebelde emerso das camadas subalternas
da Toscana, Itália central. Profeta místico, Lazzaretti foi, também, um
pregador – em oposição à Monarquia – tal como se apresentava à Igreja.
[3] Vide Dalaqua, Renata. O debate no interior da New Left britânica. História Social Nº 25,
2013 para o lapso citado.
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