14 de março de 2014
Por
Maurício Gonçalves, militante social e
doutorando em Ciências Sociais pela UNESP [Araraquara].
Para acesso à parte 1, entre aqui: http://www.blogsintese.com.br/2014/02/artigo-1-16fevereiro-2014-por-mauricio.html
[A
questão das ciências e das epistemologias modernas]
Aqui, Santos é um típico
pós-moderno. Diz ele: “semelhantemente, segundo o novo paradigma, a ciência é
um conhecimento discursivo, cúmplice de outros conhecimentos discursivos,
literários nomeadamente” (SANTOS, 1995, p. 332). Nessa visão é a própria
realidade e seu movimento que deixam de ser os critérios de verdade. A verdade
passa a ser uma questão de argumentos e de sua concatenação lógica. A
realidade deixou de ser a referência para a produção do conhecimento. A
“representação simbólica” do real ocupa o lugar da chamada “realidade
objetiva”. Dessa forma, não há uma determinação ontológica sobre o
conhecimento. (...). Como consequência, a preocupação intelectual desloca-se
para o “discurso” e para as “práticas discursivas”, e a luta entre elas, submersas
que estão na dominação e na resistência à dominação, ubiquamente distribuídas
nos processos e nas estruturas sociais. Essa “desreferencialização do real”
acontece porque “o real é subsumido a um processo de significação sem
referente, ou auto-referenciado” (ZAIDAN FILHO apud EVANGELISTA, 2002, p.25).
Rompe-se,
assim, a vinculação entre ideia e matéria, e a justa relação entre ambas.
Recaí-se no idealismo não só pela prevalência da primeira em relação à
segunda, mas pela sua absoluta autonomização. Assim, o conhecimento científico
tem o seu caráter ontológico suprimido. Pois, “nosso pensamento,
inclusive o pensamento dialético, é somente uma das formas de expressão da
matéria em modificação” (TROTSKI, s/d, p.71). Não é à toa que o pós-modernismo
possui um caráter antiontológico radical. As implicações teóricas desse
idealismo podem ser notadas em várias dimensões: a) na supressão da distinção
entre sujeito-objeto. O novo paradigma emancipatório tem a aprender com
Montaigne, através de uma operação de escavação arqueológica, exatamente isto:
a superação da distinção em tela. “Para isso, [Montaigne] rompeu radicalmente
com a distinção sujeito/objeto em que assenta a ciência moderna, antecipando
assim de muitos séculos o que hoje é pretendido pelo novo paradigma” (SANTOS,
1995, p. 334); b) na indistinção entre aparência-essência e na
incompreensão da historicidade da relação relativo-absoluto: “sendo um
conhecimento argumentativo, o novo paradigma recusa totalmente duas outras
características da ciência moderna – a intemporalidade das verdades científicas
e a distinção absoluta entre aparência e realidade – por achar que cada uma
delas, a seu modo, tem uma vocação totalitária” (SANTOS, 1995, p. 330); c) na
não distinção entre natureza-sociedade; d) na inexistência de uma
dimensão de totalidade ou na impossibilidade da superação do caráter
fragmentário do mundo.
Não
é possível hoje uma epistemologia geral, não é possível hoje uma teoria geral.
A diversidade do mundo é inesgotável, não há teoria geral que possa organizar
toda essa realidade. Estamos em um processo de transição, e provavelmente o
possível seja o que chamo de um universalismo negativo: neste momento, neste
trajeto, não necessitamos de uma teoria geral. Não é possível, e tampouco
desejável, mas necessitamos de uma teoria sobre a impossibilidade de uma teoria
geral. Estamos de acordo que ninguém tem a receita, ninguém tem a teoria
(SANTOS, 2007, p. 39).
Sua
principal construção epistemológica e alternativa à ciência moderna está na
utilização das sociologias das ausências e das emergências em direção a uma
ecologia de saberes. Aqui, duas observações: a) se tivesse considerado o legado
racional da modernidade e das propostas emancipatórias modernas críticas à
modernidade (como o marxismo) de uma forma mais complexa e rica, teria
observado que muito de sua proposta das sociologias das ausências e das
emergências estão já presentes na própria crítica moderna à modernidade do
marxista Benjamin [1],
por exemplo; b) como a descredibilização da ciência moderna por Santos atinge
níveis elevadíssimos, como a terceira citação do início deste artigo demonstra,
e isso decorre da identificação que ele opera entre ciência moderna e sua
utilização prática (subordinada aos interesses do capital), muito de suas propostas
epistemológicas e teóricas acabam por flertar com saídas irracionalistas:
“para dar um exemplo caseiro, o conhecimento dos camponeses portugueses não é
menos desenvolvido que o dos engenheiros agrônomos do Ministério da
Agricultura” (SANTOS, 1995, p. 330).
Depois
dessas palavras, originalmente ditas em 1995, Santos, mais de uma década
depois, mudou um pouco a ênfase e a tonalidade do raciocínio, ainda que tenha
mantido sua essência.
A
ecologia dos saberes. Não se trata de “descredibilizar” as
ciências nem de um fundamentalismo essencialista “anticiência”; como cientistas
sociais, não podemos fazer isso. O que vamos tentar fazer é um uso
contra-hegemônico da ciência hegemônica. Ou seja, a possibilidade de que a
ciência entre não como monocultura mas como parte de uma ecologia mais ampla de
saberes, em que o saber científico possa dialogar com o saber laico, com o
saber popular, com o saber dos indígenas, com o saber das populações urbanas
marginais, com o saber camponês. Isso não significa que tudo vale o mesmo.
Discutiremos isso com o tempo. Somos contra as hierarquias abstratas de
conhecimento, das monoculturas que dizem, por princípio, “a ciência é a única,
não há outros saberes” (SANTOS, 2007, p. 32).
Não
se trata de impossibilitar o “diálogo” entre as diferentes formas de
conhecimentos e saberes. Uma ciência que se preze tem o dever de realizar isso.
Aqui, é verdade, a preocupação de Santos se dirige ao “imperialismo da ciência
moderna” (a serviço do capital), e é justificada. Em nome da ciência – como um
álibi para a dominação de outros povos ou de minorias nacionais – muito já foi
feito. Entretanto, afirmar que os diferentes tipos de saberes deverão passar
por um processo de discussão para que se possa avaliar qual pode (e em que
circunstâncias) “valer mais do que o outro”, parece-nos negar as conquistas,
explicações e resultados que a ciência moderna crítica da modernidade
proporciona para a humanidade frente a conhecimentos que outrora se supunham
“verdadeiros”.
O
fundamental é que existe uma incompreensão da noção de verdade [2],
que ele parece associar de uma vez por todas com a idéia de eternidade e
imutabilidade. Como ele não aceita essa noção absurda e anti-histórica – e
portanto não-científica –, mas tampouco percebe que a verdade só pode
ser mutável e histórica, acaba por migrar para o pólo irracionalista.
Novamente lhe falta o manejo com as noções dialéticas de relativo-absoluto e os
limites históricos em que se inserem.
Assim,
como não existe separação absoluta entre a verdade e o erro, tampouco existe
linha de demarcação entre verdade absoluta e a verdade relativa. Cada etapa do
desenvolvimento do conhecimento traz consigo novos grãos, e “grãos” de uma
verdade cada vez mais aguçada e precisa, mais extensa, para essa colheita de
verdades. Cada verdade atingida é relativa; mas o conjunto das verdades
atingidas e determinadas como relativas faz parte do conhecimento objetivo
absoluto. Também aqui devemos encarar o pensamento vivo, em movimento,
envolvendo o seu passado, suas conquistas, seus instrumentos, todos os seus
momentos situados cada qual em seu devido lugar, cada qual com seu
alcance e seus limites – e dirigindo-se, a partir desse movimento em seu
conjunto, no sentido da verdade. A etapa antiga, a lei aproximativa, a teoria
transitória, não são suprimidas pelo desenvolvimento subseqüente que as supera;
ao contrário, são conservadas com um sentido novo, em sua verdade
(LEFEBVRE, 1979, p. 98).
No
conjunto do conhecimento humano, as mais humildes constatações e os
procedimentos mais simples da prática tem o seu lugar e ocupam o seu lugar, o
seu grau, tanto na história quanto na atualidade (LEFEBVRE, 1979, p. 100).
Sua
construção teórica e epistemológica, entretanto, não deixa de ter coerência com
sua proposta política. A democracia epistemológica que ele propõe (ecologia dos
saberes) está organicamente articulada com a sua proposta de democratização da
vida social como sinônimo para socialismo, como veremos mais adiante. Qual a
sua proposta de emancipação política e social?
Vejamos a problemática a partir dos seguintes
pontos: a) A questão do trabalho e dos sujeitos sociais da emancipação social;
b) a dicotomia Estado/sociedade civil; c) a concepção de poder; d) a concepção
de socialismo.
III.
[A
questão do trabalho e dos sujeitos sociais da emancipação social]
Sobre este quesito, os
debates se concentram, em especial, sobre da importância da categoria classe
social. Em geral, a posição pós-moderna varia entre dois pólos: a) a total
irrelevância da categoria analítica classe social (ou mesmo de sua
inexistência social efetiva) para a explicação e transformação da dinâmica
pós-moderna, e; b) o entendimento de que é uma categoria tão importante,
analítica ou politicamente, como outras que se vinculam a diversas outras
formas de opressão social (encarnadas nos novos movimentos sociais ou
movimentos sociais de causas específicas) [3].
A posição de Santos se identifica com o segundo deles. Mas essa identificação
possui algumas peculiaridades. “Por minha parte, penso que a primazia
explicativa das classes é muito mais defensável que a primazia transformadora.
Quanto a esta última, a prova histórica parece ser por demais concludente
quanto à sua indefensabilidade” (SANTOS, 1995, p.41). A manutenção da primazia
explicativa das classes deriva de sua leitura da globalização neoliberal. Ele é
ciente de que esse processo ampliou consideravelmente a relação de
assalariamento no mundo inteiro e em especial nos países periféricos. Assim, as
classes sociais não estariam em desaparição. Muito menos a classe proletária. Entretanto,
dado o processo de dispersão do trabalho e o aumento de sua informalização e
precarização, o privilégio da transformação social baseada no critério classe
(ou no sujeito social ‘proletários-operários’) é indefensável no novo paradigma
pós-moderno. Essa idéia carrega uma importância enorme para o FSM e não é à toa
que a palavra classe não aparece uma única vez em sua carta de princípios.
(...)
a dispersão social do trabalho obtida nas duas últimas décadas por processos
tão diferentes como a transnacionalização dos sistemas produtivos, a
precarização e informalização da relação salarial, o aumento do trabalho
autônomo e ao domicilio, ao mesmo tempo que dificulta a mobilização sindical,
marginaliza a experiência do trabalho nos processos de construção da
subjetividade, quer do não trabalhador, quer do trabalhador. (...) Estes
processos de dispersão social e de disjunção entre práticas e ideologias ajudam
a situar o terceiro argumento sobre a perda da importância do espaço-tempo da
produção, ou seja, a idéia de que o operariado deixou de ser uma força
privilegiada de transformação social. Esta idéia parece hoje amplamente
confirmada. (...) tudo isto aponta no sentido de retirar ao operariado qualquer
privilégio nos processos de transformação social (SANTOS, 1995, p. 310).
[A
dicotomia Estado/sociedade civil]
Já não é novidade alguma
que na dicotomia Estado/sociedade civil a matriz pós-moderna atribui um
acentuado antagonismo entre os dois termos, não sendo incomum que impute uma
negatividade ao primeiro e uma positividade ao segundo. Em linhas gerais, a
sociedade civil é tida como em essência o novo lócus das transformações sociais
e mesmo da emancipação social. Em suas versões mais extremas, como é o caso de
John Holloway – Mudar o mundo sem tomar o poder –, a conquista do poder
político (encarnado no Estado) não deve sequer ser objetivado. Santos não faz
parte de nenhuma dessas versões e é possível dizer que suas posições são mais
bem mais complexas e menos vulgares. Ele percebe de maneira clara a vinculação
intestina do Estado neoliberal com os imperativos globais de acumulação do
capital e de como se gesta um novo autoritarismo ou o que ele chama de uma
“democracia política com fascismo social”.
A
meu ver, o que está verdadeiramente em causa na “reemergência da sociedade
civil” no discurso dominante é um reajustamento estrutural das funções do
Estado por via do qual o intervencionismo social, interclassista, típico do
Estado-Providência, é parcialmente substituído por um intervencionismo
bicéfalo, mais autoritário face ao operariado e a certos setores das classes
médias (por exemplo, a pequena burguesia assalariada) e mais diligente no
atendimento das exigências macro-econômicas da acumulação de capital (sobretudo
do grande capital). É inegável que a “reemergência da sociedade civil” tem um
núcleo genuíno que se traduz na reafirmação dos valores do autogoverno, da
expansão da subjetividade, do comunitarismo e da organização autônoma dos
interesses e dos modos de vida. Mas esse núcleo tende a ser omitido no discurso
dominante ou apenas subscrito na medida em que corresponde às exigências do
novo autoritarismo (SANTOS, 1995, p. 124).
Mas a visão do novo papel que o Estado adquire
não o faz perder de vista sua importância para os processos de luta social: “creio
que o erro mais dramático da esquerda seja dizer que o Estado é irrelevante,
que é totalmente corrupto e que não temos de nos preocupar mais com ele. Penso
que é preciso lutar dentro e fora do Estado, não há alternativa” (SANTOS, 2007,
p. 111). A leitura que faz do novo papel do Estado neoliberal é, no
fundamental, bastante rica. Entretanto, como vivemos num período de transição
paradigmática, onde o antigo período ainda não morreu definitivamente e o novo
ainda não nasceu completamente, como Santos vê o papel do Estado nesta
transição? Coerente com sua proposta de democratizar a democracia, o
Estado tem que ser democrático no sentido de assegurar em condições de
igualdade a disputa pela direção da sociedade civil (e também pela dominação do
Estado) e a possibilidade de grupos ou classes rivais colocarem suas posições
(de forma também democráticas) em pé de igualdade para que os cidadãos decidam
sua vinculação nesta competição de paradigmas adversários. Ele chama esse tipo
de Estado de “providencial”: “na transição paradigmática, o Estado será dito
Estado-Providência quando assegurar a concorrência em igualdade de
circunstâncias entre os principais paradigmas rivais” (SANTOS, 1995, p. 337).
Essa concorrência deve se dar em todos os níveis da sociedade civil [4].
Assim, o Estado deve mesmo proporcionar a realização de algumas condições
materiais mínimas (cidadania social, política e civil) para que essa competição
se dê de forma o mais equilibrada possível e para que a participação da
sociedade civil seja efetiva na definição dos rumos sociais.
Por
exemplo, três condições são fundamentais para poder participar: temos de ter
nossa sobrevivência garantida, porque se estamos morrendo de fome não vamos
participar; temos de ter um mínimo de liberdade para que não haja uma ameaça
quando vamos votar; e finalmente temos de ter acesso à informação. Parece-me
que com essa cidadania bloqueada está se banalizando a participação;
participamos cada vez mais do que é menos importante, cada vez mais somos
chamados a ter uma opinião sobre coisas que são cada vez mais banais para a
reprodução do poder (SANTOS, 2007, p. 92).
Sob
o domínio do capital, como é possível proporcionar a luta em igualdade de
condições entre os paradigmas rivais ainda mais em um momento histórico que
impossibilita a realização de reformas sociais progressivas universais?
Ele está ciente da dificuldade: “como democratizamos a democracia? Esse é o
desafio” (SANTOS, 2007, p. 110). É evidente que, antes de tudo, é necessária a
conquista do poder de Estado para que ele seja “suficientemente democrático” [5].
Para essa conquista, ele propõe a tática de lutas diretas e institucionais (de
modo simultâneo), dado que a democracia representativa se mostra cada vez menos
impermeável à participação popular (democracia participativa): “além disso, em
alguns contextos tem de ser cada vez mais direta, porque com a criminalização
da contestação está se reduzindo a possibilidade de uma luta institucional, e
se esta se reduz temos de abrir espaços para a possibilidade de uma luta
direta, ilegal e pacífica” (SANTOS, 2007, p. 97). “O que digo é que agora se
torna cada vez mais difícil na democracia representativa a prestação de contas,
e não vejo alternativa senão o enfrentamento por meio de mecanismos de
democracia participativa usando legalidade e ilegalidade, ação direta e ação
institucional” (SANTOS, 2007, p. 110).
Santos
está consciente de que com a radicalização das lutas contra o paradigma rival
da ordem social neoliberal e capitalista, advirão momentos em que serão
necessárias incursões anti-democráticas aos direitos do capital? Se sim,
sua teoria é capaz de assumir a responsabilidade por tais incursões? Em suma, a
proposta política de Santos percebe a diferença entre uma democracia do capital
e uma democracia das forças do trabalho?
[A
concepção de poder]
O liberalismo, o marxismo
e os demais movimentos emancipatórios do paradigma moderno, segundo a
interpretação pós-moderna, são criticáveis por terem concentrado sua concepção
de poder na conquista do Estado. Em suma, por terem localizado e
identificado, de maneira quase que completa, poder com a esfera estatal.
Santos, como visto acima, vê a necessidade de conquistar o poder de Estado, mas
não deixa de ter para com o marxismo e demais movimentos emancipatórios
modernos, a visão de que eles de fato operaram um reducionismo no que
tange à concepção de poder. Aqui, ele se vincula ao que se convencionou chamar Novos
Movimentos Sociais [NMSs] e a sua suposta mais ampla e rica concepção de
poder: a idéia de que o poder se espalha pelos mais distintos poros e relações
sociais. Percebe a importância da contribuição de Michel Foucault, mas procura
um meio termo entre esta e a concepção liberal (ou marxista) do poder
concentrado no Estado. Cria assim, um esquema composto de quatro espaço-tempo
estruturais e os diferentes tipos de poder correspondentes em cada um deles.
De
fato, esta distinção [Estado/sociedade civil] visa sobretudo impor uma
concepção homogênea e bem definida de poder e atribuir-lhe um lugar específico
e exclusivo. A concepção é, como sabemos, a concepção do poder
político-jurídico e o lugar do seu exercício é o Estado. Todas as outras formas
de poder, na família, nas empresas, nas instituições não estatais são diluídas
no conceito de relações privadas e de concorrência entre interesses
particulares.
Este
paradigma tem vindo a ser objeto de múltiplas críticas. A mais recente e mais
radical foi, sem dúvida, a de Foucault. (...) O problema desta concepção é que,
embora chame, e bem, a atenção para a multiplicidade de formas de poder em
circulação na sociedade, não permite determinar a especificidade de cada uma
delas nem a hierarquia entre elas. (...) É que se o poder está em toda a parte,
não está em parte nenhuma.
É,
pois, necessário encontrar uma via intermediária entre a concepção liberal e a
concepção foucaultiana. A minha proposta é que as sociedades capitalistas são
formações ou configurações políticas constituídas por quatro modos básicos de
produção de poder que se articulam de maneiras específicas. Esses modos de
produção geram quatro formas básicas de poder que, embora interrelacionadas,
são estruturalmente autônomas. (...) Distingo nas sociedades capitalistas
quatro espaços (que também são quatro tempos) estruturais: o espaço doméstico,
o espaço da produção, o espaço da cidadania e o espaço mundial (SANTOS, 1995,
p. 124).
O
problema fundamental dos movimentos emancipatórios do paradigma moderno (e do
marxismo em particular) foi o de – ao reduzir a concepção de poder ao Estado –
ter subordinado ou secundarizado a luta contra outras formas de opressão e
dominação à luta pelo poder estatal, ou de ter desconsiderado a luta contra
outras formas de opressão em nome da contradição capital-trabalho. Como já
visto antes, dado que a teoria pós-moderna não compartilha da possibilidade de
existência de uma teoria geral ou de um entendimento totalizador para a lógica
social, a dominação capital-trabalho passa a ter estatuto semelhante a outras
formas de dominação-opressão. Ainda que haja diferentes formas de dominação e
que não seja possível afirmar, a priori, para casos singulares, a
predominância que uma possui frente a outras, o que escapa a essa concepção é a
percepção de que é a forma-relação capital que dinamiza toda a vida
social e por conseqüência todas as formas de opressão. Em suma, que a
forma-relação capital é o momento predominante para a reprodução da
ordem social como um todo.
O
FSM tem sido muito importante para permitirmos alguns avanços na teoria.
Ajuda-nos a renovar a teoria social e política em diferentes níveis.
Um
nível é uma concepção mais ampla de poder e de opressão. Durante muito tempo –
e este é também um dos limites de nossa tradição marxista, que continua sendo
muito importante, mas deve ser objeto de uma ecologia de outros saberes – fomos
obrigados a nos concentrar em uma só forma de opressão ou dominação: a do
capital-trabalho. O FSM nos ensinou que há diferentes formas de opressão e de
poder, e que talvez não seja possível determinar, em geral, para todo o mundo,
o que é sempre mais importante em uma luta (SANTOS, 2007, p. 61).
O marxismo,
ao ter realizado essa redução da concepção de poder, reduziu também o seu
âmbito de luta a uma “mera mudança nas relações de produção”. Deixou de almejar
uma transformação civilizacional e se concentrou em uma proposta transformadora
parcial e limitada de luta de classes, integrada à modernidade capitalista
(SANTOS, 1995, p. 341) [6].
[A
concepção de socialismo]
Santos tem reservas em
denominar a ordem social progressiva que poderia e deveria suceder a ordem
social neoliberal. Ora usa a palavra “socialismo”, ora “eco-socialismo”, ora
procura não usar palavra alguma. Mas em qualquer um dos usos, o socialismo de
Santos não tem muitos pontos de aproximação com a proposta socialista do
marxismo clássico. Na verdade, a proposta de Santos pode ser entendida como
“processual”. Mas esse processo parece ter sido despido de suas alterações
qualitativas, de seus pontos de inflexão ou, ainda, de seus momentos de ruptura.
Não será estranho poder identificar muitas semelhanças entre a proposta de
transição “socialista” de Santos e a visão revisionista clássica (do
marxismo) de Bernstein com sua idéia de que “o movimento é tudo. O objetivo
final não é nada”.
Mas,
enquanto futuro, o socialismo não será nunca mais do que uma qualidade
ausente. Isto é, será um princípio que regula a transformação emancipatória
do que existe sem, contudo, nunca se transformar em algo existente. Dada a
acumulação de riscos insocializáveis e inseguráveis, da catástrofe nuclear à
catástrofe ecológica, a transformação emancipatória será cada vez mais
investida de negatividade. Sabemos melhor o que não queremos do que o que
queremos. Nestas condições, a emancipação não é mais que um conjunto de lutas
processuais, sem fim definido. O que a distingue de outros conjuntos de lutas é
o sentido político da processualidade das lutas. Esse sentido é, para o campo
social da emancipação, a ampliação e o aprofundamento das lutas democráticas em
todos os espaços estruturais da prática social conforme estabelecido na nova
teoria democrática acima abordada. O socialismo é a democracia sem fim
(SANTOS, 1995, p. 277).
Quando
comparamos as propostas políticas de Santos com as do FSM não podemos deixar de
perceber convergências fundamentais. Entretanto, como já dissemos, seria um
erro identificar de maneira completa as propostas do autor português com o
fenômeno político mais representativo da política emancipatória pós-moderna [7].
As alterações históricas na própria dinâmica do FSM trazem implicações para as
reflexões e posicionamentos de Santos. Por exemplo, no debate sobre a forma
organizativa que o FSM deve ter – espaço aberto versus movimento
social –, e que vem adquirindo intensidade cada vez maior após 2005, ele
vem assumindo posições mais próximas daqueles que afirmam a necessidade do FSM
defender pontos programáticos mínimos, mesmo que isso possa gerar algumas
defecções e exclusões.
A
mundialização é um dos desafios; o outro é a democracia interna: não tenho uma
visão de burocratização ou institucionalização do FSM (...) E depois vem a
tensão entre movimentos e ONGs, que é um campo de disputa muito forte. Penso
que é uma luta e uma disputa produtiva que é preciso continuar tentando
realizar, sobretudo para saber se o FSM vai ser um movimento de movimentos ou
se vai se institucionalizar como qualquer outra entidade social-democrata; há
uma luta e ela é aberta (...) acredito que há uma posição dominante, que é a
idéia de que o Fórum é um espaço de reflexão que não deve tomar decisões demais
para não expulsar gente. Eu vejo nisso um grande perigo, e tenho discutido isso
com muitos, porque creio que não devemos transformar o FSM em um partido
mundial – o que é impossível – porque o poder de inclusão do FSM é algo novo,
sua capacidade de agregação é mais rica – mas não compreendo como o FSM não
possa vir a ter, por exemplo, uma posição sobre a dívida, a reforma das Nações
Unidas, a privatização da água; ou seja, sobre as questões em que há consenso
(SANTOS, 2007, p. 75).
A
tentativa do autor é colaborar com o movimento de reinvenção e de renovação das
teorias e práticas emancipatórias do passado. Santos não é um pensador vulgar.
Elabora um sistema teórico original e procura se vincular às lutas sociais dos
oprimidos. Entretanto, como os dois fatores mais acima apontados – visão mais
ou menos linear e pouco contraditória da modernidade e desconsideração da
dialética – se combinam e permeiam o seu sistema teórico (e suas propostas
políticas), as suas respostas e as saídas que propõe ficam, no fundamental,
aquém do pretendido, gerando uma recaída idealista, subjetivista, metafísica
e utópica-irrealizável.
Santos
mostra o grau máximo que atinge a proposta emancipatória alternativa
“pós-moderna de contestação”. Ela ainda está inserida no horizonte da economia
política do capital: uma saída que procura superar a ordem burguesa sem, no
entanto, alterar os seus fundamentos mais básicos. Aqui, a máxima leniniana é
decisiva: “sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário”. A frase
de Lenin nos serve – diferentemente de cobrar que o FSM se converta em
movimento revolucionário de tipo leniniano – para mostrar que a viabilização de
um “outro mundo possível” necessita de uma teoria crítica e profunda que apanhe
as raízes das determinações da globalização neoliberal e que assim possibilite
a sua tentativa política de transcendência. Pois sem isso não se transita para
“outro mundo possível” algum. A não ser para o mesmo – ou provavelmente pior,
dados os limites absolutos atingidos pelo sistema – mundo do capital atual.
Referências
bibliográficas
ARCARY, Valério. “Maio de
1968: a última onda revolucionária que atingiu o centro do capitalismo”,
disponível em: http://www.pstu.org.br/esp68_artigos11.asp [Visitado em
Setembro de 2009].
BENSAID, Daniel. Os
irredutíveis: teoremas da resistência para o tempo presente. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2008.
BORON, Atílio. Filosofia
política marxista. São Paulo: Cortez Editora, 2003.
EVANGELISTA, João. Crise
do marxismo e irracionalismo pós-moderno. São Paulo: Cortez Editora, 2002.
LEFEBVRE, Henri. Lógica
formal/lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
LOWY, Michael. Walter
Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
LUKÁCS, Georg. História
e consciência de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
PINASSI, Maria Orlanda. Da
miséria ideológica à crise do capital: uma reconciliação histórica. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2009.
SANTOS, Boaventura de
Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São
Paulo: Cortez Editora, 1995.
SANTOS, Boaventura de
Sousa. Fórum Social Mundial: manual de uso. São Paulo: Cortez Editora,
2005.
SANTOS, Boaventura de
Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
[1] [a] “Pouco a pouco, me dei conta também da dimensão
universal das proposições de Benjamin, de sua importância para compreender –
“do ponto de vista dos vencidos” – não só a história das classes oprimidas, mas
também a das mulheres – a metade da humanidade –, dos judeus, dos ciganos, dos
índios das Américas, dos curdos, dos negros, das minorias sexuais, isto é, dos
parias – no sentido que Hannah Arendt dava a este termo – de todas as épocas e
de todos os continentes” (LOWY, 2007, p. 39); [b] “Rememoração dos combates
esquecidos e salvamento das tentativas fora do tempo, a apocatástase dos
momentos utópicos “perdidos” do socialismo não é uma operação contemplativa dos
surrealistas: ela está a serviço da reflexão e da prática revolucionária do
presente, aqui e agora – jetzt!” (LOWY, 2007, p. 57); [c] “O marxismo
não tem sentido se não for também o herdeiro e o executante testamentário de
vários séculos de lutas e de sonhos de emancipação” (LOWY, 2007, p. 57); [d]
“Trata-se, então, de redescobrir os momentos utópicos ou subversivos escondidos
na herança cultural, quer sejam contos fantásticos de Hoffmann, poemas de
Baudelaire, ou narrações de Leskow. Segundo Richard Wolin, Benjamin, em seus
últimos ensaios e nas teses, “não fala mais da Aufhebung (supressão) da
cultura tradicional burguesa, perspectiva que ele tinha considerado em seu
ensaio sobre a obra de arte e em seus comentários sobre Brecht; o que Benjamin
considera a tarefa principal da crítica materialista é, sobretudo, a
preservação e a explicação do potencial utópico secreto contido no cerne das
obras de cultura tradicionais”. É verdade, desde que essa “preservação” seja
dialeticamente ligada ao momento destruidor: somente quebrando a concha
reificada da cultura oficial, os oprimidos poderão tomar posse desse molusco
crítico/utópico” (LOWY, 2007, p. 79).
[2] “A heterogeneidade supõe a homogeneidade. O outro, o mesmo.
A medida relativa, a medida absoluta. E a parte, o todo. Para que diferentes
pontos de vista façam sentido simultaneamente, é preciso admitir um fundo
comum. Para Lukács, a parte somente tem sentido como passagem e como momento de
totalização; pois a totalidade não dogmática não é Ser ou Essência, mas devir.
A “categoria crucial” da totalidade concreta opõe-se assim, à lógica de
atomização e de fragmentação própria da reprodução do capital. Opõe-se à
totalidade abstrata, à “totalidade falsa” que pesa sobre o conjunto das
relações sociais e obriga a se pensar, queira ou não, sob a condição do
capital” (BENSAID, 2008, p. 87).
[3] O argumento poderia ser resumido da seguinte forma: “o
proletariado desapareceu como sujeito revolucionário privilegiado e sua “luta
contra o sistema instituído não é, quantitativa ou qualitativamente, nem mais
nem menos importante do que a de outras camadas sociais” (CASTORIADIS, 1985, p.
76). Por esse motivo, a concepção de um sujeito revolucionário deve dar lugar a
uma “nova” forma de pensar as transformações sociais a partir de uma
pluralidade de sujeitos sociais igualmente importantes. Daí, podemos concluir
que as classes sociais não podem mais ser consideradas os sujeitos coletivos
fundamentais na trama da reprodução e/ou transformação das relações sociais e
da ordem social abrangente” (EVANGELISTA, 2002, p. 19).
[4] Caso tenhamos a compreensão de que a relação-capital é incontrolável
(e de que na luta contra o capital não se trata de administrá-lo, mas de
destruí-lo), não pode deixar de ser utópica-irrealizável (uma vez que
auto-contraditória com a própria dinâmica do capital) a sua proposta de
igualdade de condições competitivas na esfera produtiva: “no espaço-tempo da
produção, o conflito e a concorrência será entre unidades capitalistas de
produção e unidades eco-socialistas de produção. Nestas últimas cabem
organizações de muitos diferentes tipos, mas que partilham o fato de não serem
orientadas, nem exclusivamente, nem primordialmente, para a obtenção de lucros:
unidades de produção cooperativa, pequena agricultura familiar, serviços
comunitários, instituições particulares de solidariedade social, organizações
não governamentais, produção auto-gestionária, etc. A segunda dimensão
providencial do Estado reside em apoiar em igualdade de circunstâncias unidades
produtivas de ambos os tipos para que possam em igualdade de circunstâncias
mostrar o que valem, quer pelo resultado da produção, quer pelos valores da
subjetividade que suscitam e promovem” (SANTOS, 1995, p. 338).
[5] “O capitalismo não é criticável por não ser democrático,
mas por não ser suficiente democrático” (SANTOS, 1995, p. 270).
[6] Isso demonstra uma enorme incompreensão de alguns conceitos
do materialismo histórico, seja o de lutas de classes, seja o de relações
de produção. Pois os reduz ao âmbito eminentemente econômico
(entendido de modo restrito) da vida social. Com relação à questão de uma
transformação civilizacional e à luta contra outras formas de opressão, “Lênin,
desde o início, percebeu bem a importância de diferenciar entre (a)
“tomada de poder”, um ato eminentemente político pelo qual as classes
exploradas se apoderavam do Estado e (b) a concretização da revolução
concebida como uma tarefa fundamentalmente civilizatória. Comparando a
revolução no Oriente e no Ocidente, Lênin dizia, numa passagem luminosa de sua
obra, que “a revolução socialista nos países avançados não pode começar tão
facilmente como na Rússia, país de Nicolau e Rasputin [...]. Num país como
esse, começar a revolução era tão fácil como levantar uma pena”. E prosseguia
afirmando que é “evidente que na Europa é incomensuravelmente mais difícil
começar a revolução, enquanto na Rússia é incomensuravelmente mais fácil
iniciá-la, mas será mais difícil continuá-la” (LÊNIN apud BORON, 2003, p. 219).
Foi precisamente a partir dessas lições oferecidas pela história comparativa
das lutas operárias e socialistas no início do século XX que Lênin insistiu na
necessidade de diferenciar entre o “início da revolução” e o desenvolvimento do
processo revolucionário. Se no primeiro caso a conquista do poder político e a
transformação do proletariado em classe dominante era condição indispensável –
mas não suficiente – para o lançamento do evolver revolucionário, seu efetivo
avanço exigia uma série de políticas e iniciativas que transcendiam amplamente
o início do processo.
Em relação a este tema, é impossível
esconder a importância das contribuições teóricas de Antonio Gramsci. Em
múltiplos escritos ele assinalou que a criação de um novo bloco histórico que
deslocasse a burguesia do poder supunha uma dupla capacidade das forças
contra-hegemônicas: estas deveriam ser dirigentes e dominantes ao mesmo tempo.
E ainda, na verdade, as forças insurgentes deveriam primeiro ser dirigentes, ou
seja, ser capazes de exercer uma “direção intelectual e moral” sobre grandes
setores da sociedade – isto é, estabelecer sua hegemonia – antes de que se
pudessem discutir com alguma possibilidade de êxito a conquista do poder
político e a instauração de seu domínio. No entanto, direção intelectual e
moral e dominação política eram duas faces inseparáveis de uma mesma e única
moeda revolucionária: sem a primeira, a insurgência social naufraga no
“aparelhismo”; sem vocação de poder, a luta política torna-se etérea polêmica
cultural” (BORON, 2003, p. 219). O problema do FSM e de toda a pós-modernidade,
mesmo a de contestação, é o de separar ou opor os marxistas Lênin e
Gramsci. Quando muito, rejeitando o primeiro, reivindicam o segundo. Mas nesse
processo de reivindicação o Gramsci que resta está já completamente estéril e
inserido no interior da ordem do capital.
[7] Ele chegou a afirmar a necessidade de eliminação do Banco
Mundial, certamente verbalizando uma posição não dominante no interior
do FSM: “nessas diferenças que houve nos movimentos sobre como analisar o Banco
Mundial, houve uma divisão dentro do FSM entre os que pensavam que o Banco
Mundial poderia ser democratizado no sistema das Nações Unidas e outros que
diziam que nunca o seria e que devíamos lutar pela sua eliminação. Hoje só a
segunda opção tem sentido” (SANTOS, 2007, p. 114).